27.7.15

[O remoto rei dos corvos]

O REMOTO REI DOS CORVOS,
Edgar Allan Poe,
deixa cair do seu bico,
no centro de uma biblioteca,
os restos de uma musa.
Cansados de tanta melancolia,
os ratos montam à sua volta um circo.

«Annabel Lee», «Annabel Lee»,
guincham os bichos,
repartindo os ossos entre si.

Mostram os dentes,
esticam-lhe a pele.
Sabem que o poema
não tem outro precursor
a não ser a fome,
nem outro seguidor
a não ser o crime.

Golgona Anghel

COMO UMA FLOR DE PLÁSTICO NA MONTRA DE UM TALHO, Assírio & Alvim, Maio de 2013

24.7.15

[De barro somos, dizem os oráculos]

De barro somos, dizem os oráculos,
solícitas vozes do crepúsculo
ou das manhãs solenes, rituais.

De heróis e deuses falam
mitos e salmos, dou
tos compêndios de
subtil doutrina. Assim
de urtigas e de musgo
se alimentam as parábolas,
escreve a ciência
os seus epitáfios.

Albano Martins

VOCAÇÃO DO SILÊNCIO, Poesia (1950-1985), Prefácio de Eduardo Lourenço, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Fevereiro de 1990

6.7.15

Giánnis Ritsos

As palavras têm outra casca


As palavras têm outra casca
lá mais para dentro
como as amêndoas
e a paciência.

                                            1974

Giánnis Ritsos

POESIA MAIS-QUE-PERFEITA, Tradução Ana Leal, Edição Alma Azul, Coimbra/Castelo Branco, Fevereiro 2005

3.7.15

Bebendo o Sol de Corinto

Bebendo o Sol de Corinto
Lendo as ruínas de mármore
Percorrendo vinhedos e mares
Divisando adiante do arpão
Um peixe votivo que se escapa
Encontrei as folhas que o salmo do sol recorda
A terra viva que a paixão rejubila em abrir.

Bebo água, corto frutos,
Faço avançar minha mão pela folhagem do vento
Os limoeiros diluem o pólen de estio
As aves verdes dilaceram meus sonhos
Parto com um olhar
Um grande olhar em que o mundo se recria
Bebo desde o princípio até às dimensões do coração!

Odysseus Elytis

DEZASSEIS POEMAS DE ODYSSEUS ELYTIS, Traduzidos por Mário Cláudio, com um desenho de Rui Aguiar, o oiro do dia, Porto, Janeiro/1980

1.7.15

COISAS ACABADAS

Dentro do medo e das suspeitas,
com a mente agitada e os olhos aterrados,
fundimos e planeamos o que fazer
para evitar o perigo
certo que desta forma horrenda nos ameaça.
No entanto, equivocamo-nos, não está esse no caminho;
falsas eram as mensagens
(ou não as ouvimos, ou não as sentimos bem).
Outra catástrofe, que não imaginávamos,
brusca, torrencial, cai sobre nós,
e desprevenidos - como teríamos tempo - arrebata-nos.

Konstandinos Kavafis

POEMAS E PROSAS, Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1994