Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campo de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, álamos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campo de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.
Paul Celan
A MORTE É UMA FLOR, Poemas do Espólio, Tradução, posfácio e notas de João Barrento, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1998
20.4.16
[sôbolos rios que vão desaguando nas trevas,]
sôbolos rios que vão desaguando nas trevas,
eu, sentado a este papel, escrevo
que o perdão sem piedade,
não pelos actos, mas
pelas palavras,
nunca me será dado, e rejubilo,
porque o perdão enfim veria os nomes anulados
pelo falso entendimento
coisa a coisa
-- e eu não quero mais perdões de nada
Herberto Helder
Letra Aberta, Porto Editora, Março de 2016
eu, sentado a este papel, escrevo
que o perdão sem piedade,
não pelos actos, mas
pelas palavras,
nunca me será dado, e rejubilo,
porque o perdão enfim veria os nomes anulados
pelo falso entendimento
coisa a coisa
-- e eu não quero mais perdões de nada
Herberto Helder
Letra Aberta, Porto Editora, Março de 2016
13.4.16
a cada passo
passa por mim aquele poemático que diz eu
sou o senhor dos gritos passa a galope ope ope ope
leva a musa no lombo e a musa leva nos al
forges um bombo
eu pus a minha musa no cavalo de pau e só de
longe a longe é que vou por trás a musa le
vanta-se um bocadinho e eu com o de
dinho vejo se tem ovo
pró menino papar todo
Alberto Pimenta
O LABIRINTODONTE, 7 nós, Porto, 2012
sou o senhor dos gritos passa a galope ope ope ope
leva a musa no lombo e a musa leva nos al
forges um bombo
eu pus a minha musa no cavalo de pau e só de
longe a longe é que vou por trás a musa le
vanta-se um bocadinho e eu com o de
dinho vejo se tem ovo
pró menino papar todo
Alberto Pimenta
O LABIRINTODONTE, 7 nós, Porto, 2012
11.4.16
O offshore da minha rua
O Tejo é mais belo que o rio que corre na minha aldeia
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre na minha aldeia
Alberto Caeiro
O offshore da minha rua é o mais
secreto offshore da minha aldeia,
mas o offshore da minha rua não é
o mais secreto offshore da minha aldeia,
porque na minha aldeia não há offshore.
No offshore da minha rua, o segredo
é a alma do negócio e as contas
são caladas, anónimas, discretas.
Quanto bato à porta do offshore
da minha rua, ela é aberta por um
sujeito de nariz absorto, com cara
de porteiro, mas que não é porteiro
nem segurança e, pelo questionário
em riste, deve ser agente do paraíso
fiscal, especialista na arte demolidora
da crítica, mas sempre disposto
a ignorar os papéis da minha conta.
Perguntei-lhe há dias se os poemas
concretos, as metáforas, os oxímoros
e outras figuras de estilo, em desuso,
permanecem resguardados da procura
obsessiva dos coleccionadores
de inutilidades e, sobretudo, das
arremetidas do fisco, e ele jurou,
pela alma de todos os mercados,
que a minha conta (salvo a excepção
de que nem vale a pena falar, dada
a total indiferença que sobre ela recai),
continua seguramente anónima
e não aguça o mínimo interesse
dos caçadores de novíssimas estéticas.
Na minha rua, quem procura
raridades desse quilate, bate
quase sempre com o nariz na porta.
Saio do offshore da minha rua
com a consciência tranquila de um
anónimo sem rosto, e sem a angústia
de ser denunciado por uma fuga
de informação ou vítima de um ataque
cibernético.
© Domingos da Mota
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre na minha aldeia
Alberto Caeiro
O offshore da minha rua é o mais
secreto offshore da minha aldeia,
mas o offshore da minha rua não é
o mais secreto offshore da minha aldeia,
porque na minha aldeia não há offshore.
No offshore da minha rua, o segredo
é a alma do negócio e as contas
são caladas, anónimas, discretas.
Quanto bato à porta do offshore
da minha rua, ela é aberta por um
sujeito de nariz absorto, com cara
de porteiro, mas que não é porteiro
nem segurança e, pelo questionário
em riste, deve ser agente do paraíso
fiscal, especialista na arte demolidora
da crítica, mas sempre disposto
a ignorar os papéis da minha conta.
Perguntei-lhe há dias se os poemas
concretos, as metáforas, os oxímoros
e outras figuras de estilo, em desuso,
permanecem resguardados da procura
obsessiva dos coleccionadores
de inutilidades e, sobretudo, das
arremetidas do fisco, e ele jurou,
pela alma de todos os mercados,
que a minha conta (salvo a excepção
de que nem vale a pena falar, dada
a total indiferença que sobre ela recai),
continua seguramente anónima
e não aguça o mínimo interesse
dos caçadores de novíssimas estéticas.
Na minha rua, quem procura
raridades desse quilate, bate
quase sempre com o nariz na porta.
Saio do offshore da minha rua
com a consciência tranquila de um
anónimo sem rosto, e sem a angústia
de ser denunciado por uma fuga
de informação ou vítima de um ataque
cibernético.
© Domingos da Mota
10.4.16
[Tudo é jogo e música, afinal pouca coisa.]
Tudo é jogo e música, afinal pouca coisa.
O paraíso cede há muito à cilada das máquinas,
e não há origem reconhecível no que dizes.
Debruças-te sobre os fragmentos
amontoados à saída de casa. Consegues ainda respirar,
consegues? Afinal consegues. Vê como os teus braços
Luís Quintais
O VIDRO, poesia, Assírio & Alvim, Porto, Março de 2014
O paraíso cede há muito à cilada das máquinas,
e não há origem reconhecível no que dizes.
Debruças-te sobre os fragmentos
amontoados à saída de casa. Consegues ainda respirar,
consegues? Afinal consegues. Vê como os teus braços
Luís Quintais
O VIDRO, poesia, Assírio & Alvim, Porto, Março de 2014
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