30.10.11

[Por que me abandonam]

Por que me abandonam
os dias idos em que foi
largo o horizonte e hoje,
rasos, vagos, fendidos?

Um balouçar me mantém
à vida presa, a ninguém
eu que tive de antemão
tudo aqui

quase não existo. Serei rio
em leito imaginário ou deserto
em tudo único e vário?

Em verdade vos digo, a voz
um fio. Se neste dizer existo
ainda me sobra vida. Insisto.

Helga Moreira

TUMULTO, & etc, 2003

22.10.11

Cartão de resistência

Nos últimos dias do ano houve
que ir renovar o
cartão de identidade. Quer a lei que seja assim
de quando em tanto devemos ir
ao registo dizer que continuamos na mesma
(filhos dos mesmos pais
e país). Os
filhos das mães de Março são
filhos do mês de Junho mas
por alguma espúria ética querem ter
mesmo a certeza de que seguimos aqui
dando a cara pela república
apondo o
dedo na ferida.

João Luís Barreto Guimarães

LUZ ÚLTIMA, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006

19.10.11

[Pedro e Inês foram vistos na cidade]

Pedro e Inês foram vistos na cidade,
entre autocarros, à hora de ponta.
Estavam num hotel, dizia a rádio.
Imaginei Inês, a luz do corpo
a cintilar na sombra, o outeiro hirsuto
que se erguia das coxas em repouso,
e o sangue, arrefecendo, a descer lento
o delta do seu rio interior.
Porém, disseram que iam a fugir,
deixando para trás a cama e o hotel.
Claro que Afonso IV os procurava,
depois de ter entrado, triunfante,
na cidade onde os bufos denunciam
amantes perigosos para o mundo.

Nuno Dempster

PEDRO E INÊS: DOLCE STIL NUOVO, Edições Sempre-em-Pé, Setembro 2011

17.10.11

O MOMENTO DE

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.

Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. Olha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.

António Ramos Rosa

A MÃO DE ÁGUA E A MÃO DE FOGO, Antologia Poética, Selecção e Organização de António Ramos Rosa, Posfácio de Maria Irene Ramalho Sousa Santos, «Fora de Texto» Cooperativa Editorial de Coimbra, CRL, Outubro/87

10.10.11

[Não sai de mim afinal]

43.


Não sai de mim afinal
outra coisa além do jeito
com que modelo e aceito
o que resulta do sal

com que tempero a natura
que em minha mão se acoitou.
Ela me faz o que sou
e ao fazer-me a faço impura.

Deste bico do sapato
bebo eu a vida inteira:
aqui fechado reato

caminhos de que ribeira,
montes e flores onde exacto
encontro a minha maneira.

Pedro Tamen

O livro do sapateiro, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2010

8.10.11

DIÓSPIROS

Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder

Jorge Sousa Braga

O POETA NU [poesia reunida], Assírio & Alvim, Lisboa, Junho de 2007

7.10.11

ALMAS

Sempre admirei dos bichos
a magnífica destreza. Mesmo sem
alma, filosofia ou pátria,
defendem os limites
da pele e dos ameaçados territórios
onde se ocultam, no auge vital dos parcos anos.

Sempre admirei o desinteresse
soberano com que as fêmeas assistem
às competições masculinas e como
se mantêm independentes
e mestras na arte da caça
e sustento das crias, sem pensão
de alimentos ou outras demandas.

A sua maior tragédia
é serem tantas vezes criados
para serviço e digestão de bípedes
com alma, pátria e filosofia.

Inês Lourenço

COISAS QUE NUNCA, & etc, Lisboa, Julho de 2010

4.10.11

O TEMPO CONCRETO

O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito podre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um
                                                    [esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo

O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito
                                                            [de febres
repassadas  no  travesseiro  igual  das noites  e dos
                                                                    [dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa

O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível

O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos

O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros
                                                           [reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas

O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem  morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados

O tempo implacável
em que jurámos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada

O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar demais

O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e estes fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil

O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores do bom senso passeiam divertidos

O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção

António Ramos Rosa

O GRITO CLARO, Colecção "A Palavra", n.º 1, Faro - 1958