27.2.12

SONETO SUPERDESENVOLVIDO

É tão suave ter bons sentimentos
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem

Por isso se no verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada
Consola mais viver assim no meio de muitos pobres
que conviver com gente a quem não falta nada

E ao fim de tantos anos a dar do que é seu
independentemente da maneira como se alcançou
ainda por cima se tem lugar garantido no céu
gozo acrescido ao muito que se gozou

Teria este (se não tivesse outro sentido)
ser natural de um país subdesenvolvido

Ruy Belo

HOMEM DE PALAVRA(S), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Janeiro de 1970

25.2.12

O guardador das águas

4.

O guardador das águas
mergulhava
serenamente a cabeça
entre as mãos,
de cotovelos crivados,
suspensos
nas ombreiras dos joelhos.

Xavier Zarco

O guardador das águas, Mar da Palavra - Edições, Lda, Coimbra, Novembro de 2005

19.2.12

ENUNCIADO

Agora não posso mais priscar na areia quente
que nem os lambaris que escaparam do anzol.
Não posso mais correr nas chuvas na moda que
os bezerros correm.
Não posso mais dar saltos-mortais nos ventos.
Agora
Eu passo as minhas horas a brincar com palavras.
Brinco de carnaval.
Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara.
Faço o que posso.

Manoel de Barros

POEMAS RUPESTRES [3.ª PARTE, Carnaval], Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2004

15.2.12

A CASA FRIA

já cosi as duas faces do poema
as duas estâncias
com as palavras da casa fria

disse à mulher que viesse
que acorresse à casa fria
e agora já dobrei a folha ao meio
e uni as metades da casa
com um ponto de costura

João Miguel Henriques

TAMBÉM A MEMÓRIA É ALGUM CONHECIMENTO, in ISSO PASSA, Artefacto, Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, Lisboa, Dezembro 2011

13.2.12

[Lembrança do que foste se recorta]

Lembrança do que foste se recorta
como esperança do porvir; que venha
o tempo então em que não mais detenha
o corpo à mente, que só ela importa;

chegue o dia em que a vida seja morte
que de ilusão a sua base tenha,
e todo amor se esvaia que provenha
de se não ter passado a estreita porta;

isto rezo em meu peito, disto penso
e todo o mundo se me vai suspenso
do que me surge firme livramento;

mas à frente de mim a estátua chora
da que, voltada para trás, implora
a forma, o som, a cor, o movimento.

Agostinho da Silva

Inéditos, in Golpe d'asa, Revista de Poesia, CLEPUL e GOLPE Edições, Lisboa, Novembro de 2011

9.2.12

DIA A DIA

Estamos sempre a perder coisas,
as mais frágeis, ou as que caem pelo caminho
quando abrimos os braços para receber.
A nossa vida nunca tem as mesmas palavras
para o que transportamos,
mas tudo o que achamos nos deslumbra
a casa, cheia de coisas que temos
ou não temos cada dia.

Rosa Alice Branco

Da Alma e dos Espíritos Animais, Campo das Letras - Editores, S.A., Porto, Julho de 2001

7.2.12

A PROFISSÃO DOMINANTE

Meu Deus como eu sou paraliterário
à quinta-feira véspera do jornal
nadando em papel como num aquário
ejectando a minha bolha pontual

de prosa tirada do receituário
onde aprendi o cozido nacional
do boçal fingindo o lapidário
- fora algum deslize gramatical -

receio que me chamem extraordinário
quando esta é uma prática trivial
roçando mesmo o parasitário
meu Deus dá-me a tua ajuda semanal

Fernando Assis Pacheco

A PROFISSÃO DOMINANTE, in A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2006

3.2.12

CAL

A cal,
o amor
guardado para os mortos,
dissolvente  perfeito
da tua solidão
descarnada
em meu peito,
a cal,
o coração.

Carlos de Oliveira

SOBRE O LADO ESQUERDO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 1960