Agente que sou vil do desperdício,
funcionário sem rosto e sem vergonha,
pior que rama reles, meretrício,
redundância fatal que nem se sonha
nos piores pesadelos das Finanças,
imagem que o desprezo fez profundo,
como lixo deixado das mudanças
ou esgoto a escorrer de um torvo mundo,
recuso-me a pensar por vossas mentes,
olhais-me e eu sou só indiferença,
e meus actos se fazem mais ausentes
à medida que o ódio em mim pensa.
Este foi o soneto funcionário
que escreveu um poeta panfletário!
Luís Filipe Castro Mendes
A MISERICÓRDIA DOS MERCADOS, Assírio & Alvim, Porto, Janeiro de 2014
23.3.14
19.3.14
Do tempo
Tudo se gasta.
As estradas, os carros, a noite,
os cenários urbanos,
o areal privativo
de um mês de outono,
a Foz do Douro,
o mar, os astros, Deus
e o paraíso,
o rosto que jurámos,
de tudo se prevê um fim, e nós,
seres curvados,
genéticos, sozinhos, caminhamos.
Nuno Dempster
NA LUZ INCLINADA, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2014
As estradas, os carros, a noite,
os cenários urbanos,
o areal privativo
de um mês de outono,
a Foz do Douro,
o mar, os astros, Deus
e o paraíso,
o rosto que jurámos,
de tudo se prevê um fim, e nós,
seres curvados,
genéticos, sozinhos, caminhamos.
Nuno Dempster
NA LUZ INCLINADA, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2014
11.3.14
Elegia para um não-poema
Não acodem as palavras
tão afastadas de mim
nem sequer as mais caladas
nem uma só, e assim
vou acabar o poema
antes de o ter começado,
ou melhor, o não-poema
ficará silenciado
pois não surdiu uma letra
nem uma sílaba só,
uma palavra discreta,
mas apenas este nó
na garganta que sufoca
e lacera o céu-da-boca.
© Domingos da Mota
tão afastadas de mim
nem sequer as mais caladas
nem uma só, e assim
vou acabar o poema
antes de o ter começado,
ou melhor, o não-poema
ficará silenciado
pois não surdiu uma letra
nem uma sílaba só,
uma palavra discreta,
mas apenas este nó
na garganta que sufoca
e lacera o céu-da-boca.
© Domingos da Mota
9.3.14
Porventura
Com as mãos limpas e livres,
os pés pousados no chão,
não desdenhes nem te esquives
de clamar contra o guião
dos impostos, taxas, selos,
sobretaxas, suplementos,
agravos e atropelos
e outros conseguimentos,
porventura traficâncias
de favores e coisas mais
e embustes, manigâncias
cada vez mais usuais
para cevar as ganâncias
com tantos saques e tais.
© Domingos da Mota
os pés pousados no chão,
não desdenhes nem te esquives
de clamar contra o guião
dos impostos, taxas, selos,
sobretaxas, suplementos,
agravos e atropelos
e outros conseguimentos,
porventura traficâncias
de favores e coisas mais
e embustes, manigâncias
cada vez mais usuais
para cevar as ganâncias
com tantos saques e tais.
© Domingos da Mota
6.3.14
O SUPLÍCIO
A febre parece-se com Deus.
A loucura a última oração.
Longo tempo bebi por um estranho cálice
feito de álcool e de fezes
e vi na maré do copo os peixes
atrozmente brancos do sonho.
E ao erguer o copo digo
a Deus, ofereço-te este suplício
e esta hóstia nascida do sangue
que de todos os olhos brota
como que ordenando-me que beba, como que ordenando-me que
morra
para quando por fim for ninguém
ser igual a Deus.
Leopoldo María Panero
POESIA ESPANHOLA DE AGORA/ POESÍA ESPAÑOLA DE AHORA, volume I, pág. 159, de Joaquim Manuel Magalhães, Posfácio de José Ángel Cilleruelo, Relógio d'Agua Edoitores, Lda., Lisboa, Janeiro de 1997
A loucura a última oração.
Longo tempo bebi por um estranho cálice
feito de álcool e de fezes
e vi na maré do copo os peixes
atrozmente brancos do sonho.
E ao erguer o copo digo
a Deus, ofereço-te este suplício
e esta hóstia nascida do sangue
que de todos os olhos brota
como que ordenando-me que beba, como que ordenando-me que
morra
para quando por fim for ninguém
ser igual a Deus.
Leopoldo María Panero
POESIA ESPANHOLA DE AGORA/ POESÍA ESPAÑOLA DE AHORA, volume I, pág. 159, de Joaquim Manuel Magalhães, Posfácio de José Ángel Cilleruelo, Relógio d'Agua Edoitores, Lda., Lisboa, Janeiro de 1997
5.3.14
Quarta-feira de cinzas
É quarta-feira de cinzas
e o sol mostra-se avaro,
mas por muito que ranzinzes,
o tempo, se bem reparo,
não se deixa impressionar
com desgraças ou prenúncios
e tende a continuar
impassível aos anúncios.
O tempo é mesmo assim,
e prossegue o seu caminho
sem cuidar de qualquer fim,
pois quem expira é sozinho
que o faz, mesmo que tenha
a quem dar o santo-e-senha.
© Domingos da Mota
e o sol mostra-se avaro,
mas por muito que ranzinzes,
o tempo, se bem reparo,
não se deixa impressionar
com desgraças ou prenúncios
e tende a continuar
impassível aos anúncios.
O tempo é mesmo assim,
e prossegue o seu caminho
sem cuidar de qualquer fim,
pois quem expira é sozinho
que o faz, mesmo que tenha
a quem dar o santo-e-senha.
© Domingos da Mota
3.3.14
Declaração de voto
Chega de falinhas mansas,
de promessas, de rodeios:
não te canses que me cansas,
e basta de bamboleios;
não venhas com pés de lã
amaciando os apertos
com juras para amanhã
e com os braços abertos,
pois de ti não quero nada,
ou melhor, quero que saias,
que ponhas o pé na estrada
e que ouças tantas vaias
que te mandem, pelo menos,
para os quintos dos infernos.
© Domingos da Mota
de promessas, de rodeios:
não te canses que me cansas,
e basta de bamboleios;
não venhas com pés de lã
amaciando os apertos
com juras para amanhã
e com os braços abertos,
pois de ti não quero nada,
ou melhor, quero que saias,
que ponhas o pé na estrada
e que ouças tantas vaias
que te mandem, pelo menos,
para os quintos dos infernos.
© Domingos da Mota
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