Tens mesmo de partir? Boa viagem.
Mas se podes ficar, deixa-te estar:
a vida é um sítio de passagem
que se deve viver e aproveitar;
e por muito que dure, é sempre breve,
daí que perder tempo, sem sentido,
será uma tarefa que não deve
ser muito longa, pois o que é perdido
jamais se recupera, e o remorso,
quando menos se espera, bate e, súbito,
franqueia a porta. Quase pele e osso,
sequer dás conta e, então, decúbito,
indisponível para tal visita,
nem vês a pressa com que ele te fita.
Domingos da Mota
[inédito]
28/07/2016
27/07/2016
Anjo torto
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
Carlos Drummond de Andrade
Não era a olho nu que se entrevia
e sem ser apanhado pelo radar,
movia o par de asas que brandia,
não fosse depenado num altar;
sentindo-se acossado, o anjo torto
erguia com vigor as asas soltas:
preferia fazer-se até de morto
ou ser porta-bandeira de revoltas,
do que ter de ouvir, dia após dia,
o devoto bater de mãos no peito,
no meio da mais parda hipocrisia,
embuste, falsidade e, de tal jeito,
que o próprio sacristão, de olhar agudo,
se agastava, e não via tudo.
Domingos da Mota
[inédito]
desses que vivem na sombra
Carlos Drummond de Andrade
Não era a olho nu que se entrevia
e sem ser apanhado pelo radar,
movia o par de asas que brandia,
não fosse depenado num altar;
sentindo-se acossado, o anjo torto
erguia com vigor as asas soltas:
preferia fazer-se até de morto
ou ser porta-bandeira de revoltas,
do que ter de ouvir, dia após dia,
o devoto bater de mãos no peito,
no meio da mais parda hipocrisia,
embuste, falsidade e, de tal jeito,
que o próprio sacristão, de olhar agudo,
se agastava, e não via tudo.
Domingos da Mota
[inédito]
25/07/2016
Serão de carne e osso
Serão de carne e osso aqueles que
navegam como eu, ou virtuais
espíritos errantes, como se
penassem os pecados capitais,
na pele de andarilhos que mal param
e mesmo quando param, distraídos,
resistem a pensar, e não encaram
os outros, pois que andam aturdidos
em busca de não sei que seres estranhos,
da estirpe talvez dos gambozinos,
se pequenos ou grandes, os tamanhos
nem eles saberão, tão cabotinos
com cérebros vazios: idiotas
mais néscios que muitos videotas.
Domingos da Mota
[inédito]
navegam como eu, ou virtuais
espíritos errantes, como se
penassem os pecados capitais,
na pele de andarilhos que mal param
e mesmo quando param, distraídos,
resistem a pensar, e não encaram
os outros, pois que andam aturdidos
em busca de não sei que seres estranhos,
da estirpe talvez dos gambozinos,
se pequenos ou grandes, os tamanhos
nem eles saberão, tão cabotinos
com cérebros vazios: idiotas
mais néscios que muitos videotas.
Domingos da Mota
[inédito]
24/07/2016
Ninguém
Há-de chegar o dia em que ninguém
se lembrará de ti - e, de passagem,
quase todos depois serão também
esquecidos no meio da voragem
que aprofunda a imensa desmemória
e mesmo que algumas das pegadas
tenham marcas visíveis, nem a história
deverá discernir de que passadas,
de quem era o pé ou o sapato
que deixou por ali aquele indício,
se fugia ou caçava ou se de facto
se lançou ou caiu no precipício
por acaso ou descaso ou livre-arbítrio
ou vítima das hastes do delírio.
Domingos da Mota
[inédito]
(tendo, como pano de fundo, a Ladainha dos Póstumos Natais, de David Mourão-Ferreira)
se lembrará de ti - e, de passagem,
quase todos depois serão também
esquecidos no meio da voragem
que aprofunda a imensa desmemória
e mesmo que algumas das pegadas
tenham marcas visíveis, nem a história
deverá discernir de que passadas,
de quem era o pé ou o sapato
que deixou por ali aquele indício,
se fugia ou caçava ou se de facto
se lançou ou caiu no precipício
por acaso ou descaso ou livre-arbítrio
ou vítima das hastes do delírio.
Domingos da Mota
[inédito]
(tendo, como pano de fundo, a Ladainha dos Póstumos Natais, de David Mourão-Ferreira)
20/07/2016
Mais a boca
Lá onde os lábios túrgidos se abrem
quando querem matar a sede intensa
que os traz tão acesos quanto ávidos,
tomados pelo fogo que se adensa
e, sôfregos, no meio do brasume,
ondeiam para baixo e para cima
e vão até ao pico, mesmo ao cume
da fonte natural que os anima,
lá onde os lábios túmidos se agitam
e amotinam e fremem e apetecem
e ofegam e levantam e levitam
e retesam as veias que entumecem,
lá onde quanto mais a sede é louca,
mais a boca do corpo, mais a boca.
Domingos da Mota
[inédito]
quando querem matar a sede intensa
que os traz tão acesos quanto ávidos,
tomados pelo fogo que se adensa
e, sôfregos, no meio do brasume,
ondeiam para baixo e para cima
e vão até ao pico, mesmo ao cume
da fonte natural que os anima,
lá onde os lábios túmidos se agitam
e amotinam e fremem e apetecem
e ofegam e levantam e levitam
e retesam as veias que entumecem,
lá onde quanto mais a sede é louca,
mais a boca do corpo, mais a boca.
Domingos da Mota
[inédito]
16/07/2016
Como um fósforo
Vai de mal a pior este começo:
traçado o azimute, nesse rumo,
não quero estar na pele, pagar o preço
do frio que virá depois do fumo,
pois se fogo sem fumo não existe,
tanto fogo-de-vista, mesmo preso,
faísca como um fósforo que insiste
até que chega o dia em que, surpreso,
se descobre tão-só como um punhado
de cinzas a um canto da lareira:
há começos assim; outros, assado,
e muitos quando atiçam a fogueira
nem cuidam de saber o santo-e-senha
para ter no inverno alguma lenha.
Domingos da Mota
[inédito]
traçado o azimute, nesse rumo,
não quero estar na pele, pagar o preço
do frio que virá depois do fumo,
pois se fogo sem fumo não existe,
tanto fogo-de-vista, mesmo preso,
faísca como um fósforo que insiste
até que chega o dia em que, surpreso,
se descobre tão-só como um punhado
de cinzas a um canto da lareira:
há começos assim; outros, assado,
e muitos quando atiçam a fogueira
nem cuidam de saber o santo-e-senha
para ter no inverno alguma lenha.
Domingos da Mota
[inédito]
15/07/2016
A sombra
Quando a noite, a sono solto,
acaba num pesadelo
estremunhado, um soco
reflectido no espelho
e o espelho deflecte
a imagem, cruamente,
e provoca ricochete
sobre a máscara pendente;
quando as rugas avassalam
e redesenham o rosto
com arabescos que abalam
as curvaturas do corpo:
mesmo olhada de viés,
eis a sombra do que vês.
Domingos da Mota
[revisto]
acaba num pesadelo
estremunhado, um soco
reflectido no espelho
e o espelho deflecte
a imagem, cruamente,
e provoca ricochete
sobre a máscara pendente;
quando as rugas avassalam
e redesenham o rosto
com arabescos que abalam
as curvaturas do corpo:
mesmo olhada de viés,
eis a sombra do que vês.
Domingos da Mota
[revisto]
14/07/2016
Olha o anjo
Olha o anjo
da guarda. Não o vês?
Repara bem nas asas
depenadas. No seu ar
transparente
(em que não crês),
no modo de seguir
tuas passadas.
O anjo da guarda
está cansado
de arrastar a teu lado
as asas tortas
ou pior ainda,
aperreado quando
tropeças e cais
e mal suportas
o fardo que carregas,
o que trazes.
Mas se há outros
com fardos mais
pesados, e legiões
de anjos (são às levas)
opacos, desasados,
incapazes.
Domingos da Mota
[inédito]
da guarda. Não o vês?
Repara bem nas asas
depenadas. No seu ar
transparente
(em que não crês),
no modo de seguir
tuas passadas.
O anjo da guarda
está cansado
de arrastar a teu lado
as asas tortas
ou pior ainda,
aperreado quando
tropeças e cais
e mal suportas
o fardo que carregas,
o que trazes.
Mas se há outros
com fardos mais
pesados, e legiões
de anjos (são às levas)
opacos, desasados,
incapazes.
Domingos da Mota
[inédito]
10/07/2016
LUA
Mamífero metálico. Nocturno.
Vê-se-lhe
o rosto comido por um acne.
Sputniks e sonetos.
Nicolás Guillén
O GRANDE ZOO, tradutor, Carlos Pereira, Editora Centelha - Promoção do Livro, S.A.R.L., Coimbra, Novembro de 1973
05/07/2016
PASSAGEIRO
Sou um passageiro.
Isto em bom português
quer dizer: estou de passagem.
Virá um dia em que caduque
a minha validade.
Só o comboio é perene,
inextinguível.
Por isso é uma gratuita
crueldade a voz do altifalante
dizer de vez em quando:
-- Senhores passageiros, isto.
-- Senhores passageiros, aquilo.
Passageiro.
Caramba,
não preciso que mo lembrem.
Não me enterrem mais
a coroa de espinhos:
já me está apertada,
fundida com o crânio quanto baste.
A. M. Pires Cabral
QUE COMBOIO É ESTE, Edição Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005
Isto em bom português
quer dizer: estou de passagem.
Virá um dia em que caduque
a minha validade.
Só o comboio é perene,
inextinguível.
Por isso é uma gratuita
crueldade a voz do altifalante
dizer de vez em quando:
-- Senhores passageiros, isto.
-- Senhores passageiros, aquilo.
Passageiro.
Caramba,
não preciso que mo lembrem.
Não me enterrem mais
a coroa de espinhos:
já me está apertada,
fundida com o crânio quanto baste.
A. M. Pires Cabral
QUE COMBOIO É ESTE, Edição Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005
03/07/2016
Sinais
Com o rastilho na boca
deita achas de azedume
na fogueira que provoca
e ateia com o gume
da soberba cuja faca
afia sempre que amola,
planta o medo de estaca,
ameaça, agride, esfola.
E o bode expiatório
dobra o pescoço e a cerviz
e aceita o purgatório,
a penitência e diz
ser à conta dos pecados
que um dia cometeu,
sem lembrar os paus-mandados
que prometeram o céu?
Com o rastilho pegado,
levado pela arrogância,
isto vai ser o diabo
para suster a ganância.
Mas pior que a mesquinhez
é ver aí como a história
concebe e choca outra vez
os sinais de má memória.
Domingos da Mota
[inédito]
deita achas de azedume
na fogueira que provoca
e ateia com o gume
da soberba cuja faca
afia sempre que amola,
planta o medo de estaca,
ameaça, agride, esfola.
E o bode expiatório
dobra o pescoço e a cerviz
e aceita o purgatório,
a penitência e diz
ser à conta dos pecados
que um dia cometeu,
sem lembrar os paus-mandados
que prometeram o céu?
Com o rastilho pegado,
levado pela arrogância,
isto vai ser o diabo
para suster a ganância.
Mas pior que a mesquinhez
é ver aí como a história
concebe e choca outra vez
os sinais de má memória.
Domingos da Mota
[inédito]
02/07/2016
Mas, porém
Como se fosse a madrasta
cheia de perversidade,
esta Europa que se agasta,
mas fomenta a iniquidade,
tem o seu quê de execrável
quando, olhando a incerteza,
continua, inabalável,
com a cínica avareza,
em nome de muito poucos
mandantes do status quo
que se não são mesmo loucos,
são fanáticos, sem dó
nem piedade de quem
objecta: mas, porém...
Domingos da Mota
[revisto]
cheia de perversidade,
esta Europa que se agasta,
mas fomenta a iniquidade,
tem o seu quê de execrável
quando, olhando a incerteza,
continua, inabalável,
com a cínica avareza,
em nome de muito poucos
mandantes do status quo
que se não são mesmo loucos,
são fanáticos, sem dó
nem piedade de quem
objecta: mas, porém...
Domingos da Mota
[revisto]
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