23.3.17

a mulher girava a mulher

a mulher girava a mulher
era a mó de um animal muito escuro

expandiam-se as redondezas do corpo
a mulher já não vinha no mapa mal cabia
na própria caligrafia.









mil águas depois
houve um homem.


Catarina Nunes de Almeida

MARSUPIAL, Mariposa Azual, Lisboa, Junho de 2014

15.3.17

AMENDOINS

Vivi o suficiente -- pensou.
Apenas uma única dúvida:
deveria dizer suficiente ou bastante?
Seja como for, chegou a um ponto
em que lhe era interiormente lícito dizer
que daquele ponto de vista em diante
a experiência entre os vivos
era mais ou menos redundante.
É claro que ao menor susto
haveria de agarrar-se à experiência redundante
como um macaco convictamente preênsil
por amendoins.
A vida era para ele amendoins.

Daniel Jonas

BISONTE, Assírio & Alvim, Porto, Abril de 2016

9.3.17

[Os velhos são manhosos]

Os velhos são manhosos.

Demoram-se a apanhar a fruta, sabem
que sabem esticar o braço antigo até aos primeiros figos,
que podem saber chegar ao fim da figueira.
Os velhos arrastam os pés em direcção à saída,
esgotam-se ao sol seguinte.
Cortam-se por vezes no vidro de emergência,
no buraco para o exterior.
Têm visões extraordinárias,
receitas específicas para o barroco do poema
e do mel.

Escrevo para os velhos.

Filipa Leal

VEM À QUINTA-FEIRA, Assírio & Alvim, Porto, 2016

6.3.17

Senhora da pós-verdade

Senhora da pós-verdade,
dizei-me, porque mentis
com a naturalidade
dum Pinóquio sem nariz
que se veja de verdade,
mas que cresce, oh se cresce,
porquanto a fatuidade
do seu umbigo parece
ser o exemplo perfeito
de como a venalidade
desdobrada num conceito
de aparente inocuidade,
não se esgota no filão
dos erros de percepção.


© Domingos da Mota


2.3.17

o terrorismo em 2014

numa ruela esconsa e íngreme
protegida da solar tirania
desta tarde
vi eu uma mulher inclinadíssima
alimentando em segredo
todos os pombos da cidade

António Albata


APÓCRIFA, PROJECTO LITERÁRIO EM CURSO, ANTOLOGIA, Prefácio de João Barrento, Reunião de Apócrifos Foragidos, 2016

1.3.17

O ANJO PERPLEXO

Nunca houve deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console,
nunca houve milagres ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem palavras mágicas, nem bálsamo eficaz
contra a dor que nunca cicatriza;
nem luz do outro lado das sombras
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo perplexo que suporta
como nós a mesma penosa vida.

Amalia Bautista

Jorge Sousa Braga, SOMBRAS BRANCAS, Setenta e sete poemas sobre anjos caídos de outras línguas, Língua Morta, Novembro de 2016