24.10.18

«NÃO FORA O GRITO...»

Não fora o grito         a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto         o riso
a serena postura
do cadáver na praia

Não fora a flor     a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela

Não fora o cais        a posse
do nocturno segredo
a víbora     o polícia
o tiro     o passaporte
a carta de Paris
a saudade da amante

Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo

Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição

Daniel Filipe


        (A Invenção do Amor e outros poemas)

LÍRICAS PORTUGUESAS II VOLUME, Selecção e Apresentação de Jorge de Sena, Edições 70, Lisboa - Dezembro 83

8.10.18

DUPLICIDADE DO TEMPO

O níquel, o alumínio, o estanho,
e outros assépticos elementos,
ao fim se corrompem: o tempo
injecta em cada um seu veneno.

A merda, o lixo, o corpo podre,
os humores, vivos dejectos
não se corrompem mais: o tempo
seca-os ao fim, com mil cautérios.

João Cabral de Melo Neto

POESIA COMPLETA 1940-1980, Prefácio de Óscar Lopes, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Maio de 1986