17.12.18

OUTONO

Criei a alma. A vegetação de países
irrepetíveis. Vastos bosques orlam os caminhos. Os muros
dão para o mar. As aves pontuam o céu. As ondas
                                                             [arremessam-se
sobre o litoral. O poema é cruel,
indeciso.

Preparei a nostalgia violenta da criação. Sentei-me
nos bares marítimos de cidades inglesas, esperando barcos
que não vieram. Invoquei regressos, longas
viagens, percursos espirituais. Cada dia me trouxe
uma diferente sensação.

As folhas juncam o chão. O terror
assola o planalto, as populações mórbidas
do poente. Uma voz canta as mulheres obscuras
de Southampton. Chove no poema
há alguns anos. O poeta abre, finalmente,
o chapéu de chuva.

Nuno Júdice

A NOÇÃO DE POEMA, Publicações Dom Quixote, Março de 1972

13.12.18

Alma Perdida

Duas flores sobre a mesa
uma para ti, a outra
para o corvo
Eu não era uma pedra no jardim
uma estrela no céu
ou uma pena na asa das nuvens
eu era uma alma primitiva como o fumo
pairando no isolamento dos seres
entrando como as intimidades no coração
e no olhar
Eu não tinha terra
a minha presença era a ausência

Fui sempre o silêncio das fontes
o murmúrio das pedras abrindo-se à erva
ou a revelação da terra devastada

Deixa-me pois
e fecha-me como um livro qualquer

Duas flores sobre a mesa
uma para ti
a outra
para o corvo

Iusuf Abdelaziz


PEQUENA ANTOLOGIA DA POESIA PALESTINIANA CONTEMPORÂNEA, Selecção e tradução de Albano Martins com um desenho de Alberto Péssimo, Edições ASA, Porto, 2003

1.12.18

DE PASSAGEM

O tempo
passa
e não
se vê.

Não se
pressente
enquanto
passa.

Só se
sente
quando
passou.

É por
isso que
nunca
o temos.

Fernando Aguiar

O POSSÍVEL DA MEDIDA, Edição BUSÍLIS (Tropelias & Companhia - Associação Cultural), outubro 2018.