27.2.21

AUTO-RETRATO

Estado civil casado
nacionalidade portuguesa
triste se alegre e sorridente quando triste
muito mais egoísta se se veste de altruísta
chefe só de família olhar cansado
calva prometedora e tendência obesa
à beira dos quarenta anos de idade
e ajoujado ao peso de vários passados
tímido e trágico e capaz de crueldade
tanta quão tamanho o arrependimento
temendo hoje não tanto já fazer o mal
como fazer algumas ou pior uma só vítima
incoerente e instável ora dado a bons bocados
como logo açoitado pelos ventos dos cuidados
poeta para mais por condição
homem que só pensar sabe afinal fazer
que vive a arte do amor a vida até como destruição
digam vossas mercês como devia ele ser
pois sempre assim seria inútil mesmo renascer

                                                                                   
 Madrid, 1972


Ruy Belo

TODOS OS POEMAS III, Assírio & Alvim, Outubro 2004

20.2.21

ERRANTE VAGUEAR

Errante vaguear
d'o que nem chega a ser
presença que se veja,
ausência a adivinhar:

a desolada teia
sem tear que a complete
com força que a enleie
em uma trama certa.

Ânsia que se deseje
e transformada em fado,
uma ramo que floresça
sem nada recear,

imagem que alivie
porém que m'enegrece
quando julgo que é dia
e já tudo anoitece.

António Salvado

ECOS DO TRAJECTO seguido de PASSO A PASSO, Edição Ricardo Neves Produção, Lda. - A.23 Edições, 2014

19.2.21

POEMA DA MORTE APARENTE



Nos tempos em que acontecia o que está acontecendo agora
e os homens pasmavam  de isso  ainda  acontecer  no tempo
               deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora.


A suspirar e a protestar morreram.
E agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas.

António Gedeão

POESIAS COMPLETAS (1956 -1967), Portugália Editora, Lisboa, Janeiro de 1971

13.2.21

RETRATO (QUASE)

Pequena a cabeça. De ave.
Pequenos os olhos. Nocturnos.
Breve a cintura e seios breves.

Compridos cabelos. Algas
no rastro quente e mate
do corpo longo (barco e púrpura).

Da lição do mar
quase a graça e a perícia
na arte de marear (andando).

A regra de ouro
da mulher fenícia.



                           Diplomata, Abril, 81

Luís Veiga Leitão


OS POETAS DO CAFÉ NO CAFÉ DIPLOMATA / PORTO 1981

12.2.21

ONDAS


Sei que me estou a afogar, mas ao menos
consigo manter de fora a cabeça.
De modo que, por favor,
não venhas tu fazer ondas.

*

OLAS


Sé que me estoy ahogando, pero al menos
logro mantener fuera la cabeza.
Así que, por favor,
no vengas tú a hacer olas.


Amalia Bautista



CORAÇÃO DESABITADO, Selecção e tradução de Inês Dias, Averno | 2018


9.2.21

[Antes não havia muros, os que passavam]

Antes não havia muros, os que passavam
Iam com o silêncio de Deus à sua ilharga
E colhiam do chão o trevo e a hera
Como se não houvesse amanhã.

Até que alguém inventou a antropofagia,
O garfo e a colher, a faca de trinchar
E todos começamos a dar tombos
Nas veredas e nas zonas limítrofes

Dos quintais. Daí à invenção
Dos muros foi um passo, dizem alguns
Que com muita utilidade, sobretudo as crianças

E os gatos. Por mim, fazem diferença.
Estranho-lhes o peso e a condição oblíqua
Com que interferem com a minha independência.


Amadeu Baptista

POEIRA ESCURA, editora Eufeme, Leça da Palmeira - Portugal, Janeiro de 2021

1.2.21

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA

Eu vi a morte
de noite - névoa branca -
entre os frascos do soro
rondar a minha cama

era um trasgo
e como tal metera-se
pelas frinchas; noutra versão
coando-se através
dos nós da madeira
ou noutra ainda
imitando à perfeição
o gorgolejar da água
nos ralos: eu tremia
covardemente enquanto
ela raspava a parede
com unhas muito lentas

eu vi? ouvi a morte?
com toda a probabilidade
e por instantes
era ela - luz negra -
tentando cegar-me



     Pardilhó
 7/9-VIII-94
       Lisboa
    27-XI-95


Fernando Assis Pacheco


RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Novembro 2003