27.6.20

TEORIA DO CONHECIMENTO

Quanto tempo é necessário
para perceber que se errou
a vida e não é a vida
que está errada? Quanto mais

para aceitar que isso
é o mínimo que se partilha
com amigos e vizinhos,
com estranhos e gente

de maior valia, que também
vai empurrando com brio
tal certeza para a cova?

José Alberto Oliveira

Rectificação da Linha Geral, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2020

24.6.20

[A memória da tangerina]

A memória da tangerina
fica-nos cravada nas unhas

Francisco Duarte Mangas, Paulo Moreira Lopes

pequena lua cheia de sol, edições Eufeme/Sérgio Ninguém, Leça da Palmeira - Portugal, 2020

21.6.20

NINGUÉM NOS DIZ COMO

Ninguém nos diz como
voltar a cara contra a parede
e
morrer simplesmente
assim como o fizeram o gato
ou o cachorro da casa
ou o elefante
que tomou o rumo
da sua agonia
no passo solto de quem sabe
a cerimónia improrrogável,
acenando as orelhas
ao compasso da sua tromba;
só no reino animal
se contam os exemplos de tal
comportamento,
mudar o passo
aproximar-se
farejar o já vivido
e virar as costas
simplesmente
virar as costas

Blanca Varela

António Cabrita, As Causas Perdidas. Antologia de Poesia Hispano-Americana, Maldoror, Lisboa, 2019

19.6.20

O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

poesia 1960-1989, organização e prefácio Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, Setembro 2001




11.6.20

(Dincas, Sudão)

No tempo em que Deus criou todas as coisas,
criou o sol,
e o sol nasce, e morre, e volta a nascer;
criou a lua,
e a lua nasce, e morre, e volta a nascer;
criou as estrelas,
e as estrelas nascem, e morrem, e voltam a nascer;
criou o homem,
e o homem nasce, e morre, e não volta a nascer.

Herberto Helder

AS MAGIAS ALGUNS EXEMPLOS poemas mudados para português, Assírio & Alvim, Outubro 2010

10.6.20

[Que me quereis, perpétuas saudades?]

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos!, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões

Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Julho 2000

2.6.20

O GARFO, ANDRÉ KERTÉSZ

No espaço de uma vida
há memórias
às quais permanecemos
mais fiéis.
Vejamos: este garfo
apenas pousado na borda de
um prato vazio lembra
o gesto reparador da mãe
quando chegavas a casa.
Lembra o repouso do guerreiro
a palavra do filósofo
o silêncio do pastor.

Jorge Gomes Miranda

O Caçador de Tempestades, &etc, Abril de 2004

1.6.20

QUADRA

A erudita fala dos poemas lentos
A escura idade dos olhares perversos
A clara noite dos santos eruditos
O eco obscuro dos preclaros versos

Armando Silva Carvalho

SOL A SOL, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2005