17.3.24

FRAGMENTOS

1

Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, e dura, te pode atingir.

2

Algo de visível perpassa
nos limites do ser.

3

De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.

4

Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.

5

(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim...)

6

O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.

7

No último fragmento, fixa
o efémero, e repousa.


Nuno Júdice


50 Anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022), Publicações Dom Quixote, Março de 2022

16.3.24

DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.


Natália Correia


Antologia Poética [
in Poemas] Organização e Prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Julho de 2002

11.3.24

O ar

O ar tornou-se mais espesso,
mais pesado, mais sombrio
(quase virado do avesso)
e com um cheiro a bafio.

O risco de empestar
tudo o que mexe em redor
é real, e o fedor
será pior, bem pior.


© Domingos da Mota

8.3.24

Mulher

      Metade mulher     metade sonho

       Jorge Sousa Braga


Metade terra     metade lua
Metade céu     metade averno
Metade sol     metade chuva
Metade verão     metade inverno

Metade outono - a primavera
Mais que metade (de vida grávida)
Metade eterna     metade efémera
Metade ansiosa     metade impávida 

Metade recta     metade curva
Metade côncava     metade convexa
Metade lúcida     metade turva
Metade simples     metade complexa

Metade amora     metade maçã
Metade rosa    metade espinho
Metade noite     metade manhã
Metade urtiga     metade linho

Metade rua     metade casa
Metade beijo     metade abraço
Metade colo     metade asa
Metade mulher     metade pássaro

© Domingos da Mota
    

5.3.24

RAIZ SEMPRE PRESENTE

Raiz sempre presente, e do futuro
mistério aventurado    mal ou bem
e sopro imaculado p'la manhã,
da árvore pendido um doce fruto

que derramado embora a ela     puro
volta de novo, e que é voz e silêncio
dum canto renovado    permanente
que para ser existirá sem música,

zumbido duma brisa acolhedora,
corrente d'água límpida    a fluir
até ser a miragem do meu sonho,

princípio da beleza    mavioso,
luz radiante em raios onde põe
a certeza de nunca ela o cobrir.


António Salvado

Ecos do Trajecto seguido de Passo a Passo, Edição Ricardo Neves Produção Lda., - A.23 Edições, 2014

28.2.24

sátira de John Kaspar a um poeta de mau porte

(sec. XIII)


a flauta do cego
o brilho da bota
o piano de cauda
o ás da batota

um galo a fingir
de crista de prata
e o pombo a grunhir
sem selo na carta

fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto

o Silva das lérias
no bairro galante
é um porco em férias,
um significante
da casta devassa
um pulha tratante
que na greve dos bardos
vestiu de amarelo
e roubou um pedinte
de foice e martelo

de chave encravada
faz soneto frouxo
de sapata rota
é peixe sem lota
é o prego da bota

fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto


António Ferra

lengas e narrativas, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Junho de 2022

24.2.24

Moscas

As moscas mudam, e o fedor é tanto
que tresanda a mil léguas de distância:
se a origem do fedor não causa espanto,
olhando a ambição, vendo a arrogância
de moscas que voltejam em redor
do pote e do poder, tem-se a noção
de que a fetidez será pior
se o poder for tomado em contramão.
As moscas vão mudando, e a picardia
contamina o ar que se respira,
e alimenta bem mais do que soía
a ameaça diária que transpira
por sob o fingimento, cuja insídia
respalda a avidez da moscaria.


© Domingos da Mota

12.2.24

POEMAS QUOTIDIANOS



81


Onde vamos livres

Onde vamos presos

correr como rios
durar
como pedras

e lançar raízes


António Reis

Poemas Quotidianos, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Julho de 2017

4.2.24

INSULTO AO POEMA

O poema não é lindo
como tantas vezes acham alguns ingénuos
e maus leitores. Pode ser dúvida dor ou disfarce
e tantas outras coisas começadas por d como
devastação desistência despedida ou
por r como raiva rasura ressurreição. Lembro
sempre os versos de Ana Hatherly
E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta.

Inês Lourenço

in Inês Lourenço, As Palavras Beijam Sem Carga Viral, pág. 6,
e Andreia C. Faria, Este Fresco Sanatório para o Sangue,
Editor Câmara Municipal do Porto, Porto, agosto de 2021

19.1.24

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.


Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Edição 1.ª, Setembro, 2001, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto

Cão-soneto

Soneto, quem te viu e quem te vê:
outrora celebrado, a forma eleita
de dizer, de buscar um não sei quê
intangível no fruto da colheita,
e ora surdamente desvalido
como se o descaso, em bom rigor,
da tensão entre o som e o sentido
seja o sal do sentido inovador;
ante a moda malsã que te escorraça
e trata abaixo de cão rafeiro,
com receio da pulga ou da carraça
que possas ter no lombo ou no traseiro,
agora que caíste em desuso,
de afagar-te o focinho não me escuso.

© Domingos da Mota

[revisto]

17.1.24

PARAÍSO E INFERNO

segundo a teoria
de todos os Santos
Padres, seja Tomás
seja Agostinho, seja
qual for, ganhar o
Paraíso obrigará a
perder tudo o mais,
inclusive raspadinhas...
ganhar o paraíso...
mas como é ele?

não tem nómadas,
só residentes fixos,
como os beatos e santos
e recém-canonizados,
impedidos de alugar
e pior mesmo subalugar,
porque assim é perfeito,
perfeito, para alguns
papas até, e com razão,
mais que perfeito,
ou seja, já foi, era,
não recebe mais, para
já ele acabou, ganhá-lo
é pois ganhar o que na
santa teoria existiu,
mas deu-se-lhe fim:
na prática, teve fim,
eramos tantos a dizer
in eo spero, acabou,
está cheio, mais nada,
acabou, foi, não há.

calma!
os matemáticos
ainda
não concluíram
todos os cálculos.

consegue-se?

do inferno
já conseguiram.


Alberto Pimenta

in
NERVO / 20 Janeiro a Abril de 2024, Editora: Maria F Roldão

9.1.24

Ode ao bolor

                  ad summam


Cheiram a mofo, a bafio,
os que de rosto sombrio
nos prometem o futuro.
Um futuro promissor?

Como se o cheiro a bolor
melhorasse o pão duro.
Fosse mole o pão doutrora,
(mais fresco que o pão d'agora)

e talvez muitos descrentes,
perante as suas promessas,
não as lessem às avessas
e não mostrassem os dentes.

Lembrado do pão amargo
que o diabo amassou,
quem dera fiquem ao largo,
pois com eles eu não vou.


© Domingos da Mota