11.7.25

MORTE

Sabemos que de todas as sementes
é a mais pesada. Havemos de esperar
por ela. Acolhemo-la e nada
podia ser tão nosso. Compreendemos
que no seu interior talvez exista
a última seiva, o rumor de outra
germinação para que fique
junto dela. Descai silenciosa
e devagar. A terra é o nosso corpo.

Fernando Guimarães


(Sete poemas, Revista de Poesia relâmpago N.º 29/30, Outubro de 2011-Abril de 2012, Ano XV)

5.7.25

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

O que é um nome?, um rosto
levantado com o lume dos dias?,
este lume que arde, arrefece,

nos consome, nos devora os ossos
taciturnos? O que é um nome
cinzelado a fogo?, esculpido

num rio de águas vivas?,
da pulsão das águas ao tumulto
das veias dilatadas, abrasivas?


Domingos da Mota

Bolsa de Valores e Outros Poemas
, Temas Originais, Lda., Coimbra, 2010

2.7.25

O VELHO ABUTRE

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas


Sophia de Mello Breyner

Grades, publicações Dom Quixote, Novembro de 1970

21.6.25

Ofício

Ofício de verão -
a sede abrasa o canto
insurrecto das cigarras 

Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, edição Busílis, 2018

10.6.25

Correm turvas as águas deste rio

Correm turvas as águas deste rio
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram;
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio;
Umas cousas por outra se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.


Luís de Camões


Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Julho 2000




7.6.25

A LONGO PRAZO

Valente na medida da sua maldade,

a gota arrisca-se

a perfurar a montanha

nos próximos cem mil anos.


José Emilio Pacheco


A Árvore Tocada pelo Raio, Antologia Poética, Tradução de Miguel Filipe Mochila, Maldoror, 2024

2.6.25

Sinédoque

Dissimula o engodo

do populismo e, dessarte,

toma a parte pelo todo

e o todo pela parte.


Domingos da Mota

1.5.25

Primeiro de Maio

    Tanta bandeira
     vermelha

     Teresa Horta


Tanta bandeira
vermelha
tanto sol
quanta alegria
tanta gente
nova e velha

ombro a ombro
de mãos dadas
rua afora
neste dia.
Fosse agora
como outrora

maré alta
um mar de gente:
tanta bandeira
vermelha
a drapejar
livremente.



© Domingos da Mota

21.4.25

18.4.25

62 teatro da guerra


no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor                                                 esse fenece
esse fenece                                          com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.




mas de hora a hora deus melhora


Alberto Pimenta

O LABIRINTODONTE, 7 nós, 2012

13.4.25

STABAT MATER (PERGOLESI)

Pranto que afoga

o coração da mulher

que canta

até ao soar

da última nota.


João Pedro Mésseder


Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021

4.4.25

Variações sobre a lama VI

Se há quem queira

fazer da lama

uma bandeira

luzeiro chama


facho farol:

pendão a prumo

súmula e sumo

guião de escol


© Domingos da Mota

1.4.25

Variações sobre a lama V

Se quem proclama

ser impoluto

(que não tem lama

no valhacouto)


esconde o rastro

sob o tapete

será que passa

sem o ferrete?


© Domingos da Mota

24.3.25

[Não toques nos objectos imediatos]

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.


Herberto Helder

ÚLTIMA CIÊNCIA, Assírio & Alvim, Cooperativa Editora e Livreira, CRL, Lisboa, Novembro de 1988

11.3.25

Variações sobre a lama

Fétida a lama

que nem barrela

limpa quem ama

deitar-se nela


assim opaca

barrenta escura

que só cloaca

será tão turva


© Domingos da Mota

12.2.25

O GATO EM SONETO

Para a Lua, a Ísis e o Lindo


Um gato debaixo de um tapete
é muito mais gato do que em cima:
debaixo do tapete há um palacete
que muito lhe aumenta a autoestima.

Para o gato, nada é demais:
se muito tem, muito mais quer ele ter.
Não lhe bastam as coisas essenciais,
há outros tesouros a apetecer!

O gato é um bicho bizantino,
com uma autoestima infinita:
se lhe dá um desejo repentino

ou o satisfaz, ou faz uma fita.
O melhor é a gente entendê-lo,
para que se lhe não erice o pêlo!

20-07-2022

Eugénio Lisboa


Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso, Guerra e Paz, Editores, S. A., Novembro de 2024

4.2.25

ONDE EXISTE O ESPAÇO

Cisternas são de meu espaço
habitadas de espessura
motivo de teus abraços
ou estradas de muitos
laços
para trazer à cintura

Rodeio-palavra-amiga

onde se põe
a ternura.



Maria Teresa Horta

MINHA SENHORA DE MIM
, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril de 1971