2.12.23

Poderão chamar-lhe tudo

Poderão chamar-lhe tudo,
cata-vento, escorpião,
arrivista, sabe-tudo,
papa-hóstias, beija-mãos,
intriguista, linguarudo,
comentador de salão,
afectuoso, sisudo
de lesta contradição,
ora grave, ora agudo,
inimigo da família,
não!

Tanto apascenta 
o rebanho como tuge, 
sibilino,
ardiloso no amanho,
leva a água ao moinho 
na disputa pelo pasto,
o lugar 
na manjedoura,
como padrinho ou padrasto
dos nados 
em berços de ouro.

© Domingos da Mota

1.12.23

Efeito borboleta

No princípio era o sopro,
uma brisa incipiente
aprazível, sem o escopo
de açodar-se, de repente,

como vento que se agita
e passa de vendaval
numa espiral inaudita
na rota do temporal

a um temível tufão,
um ciclone, um tornado:
o olho do furacão
que deixa tudo assolado.

O leve bater de asas
de pequenas borboletas
pode arrasar muitas casas
e cidades completas.

© Domingos da Mota

28.11.23

PALESTINA

Não são donos sequer da sombra
Que no chão projectam ao passar.

Tudo ou quase tudo lhes foi tirado
A terra, os ribeiros, as ovelhas dispersas pela terra
Os títulos de posse das pequenas quintas.

Tudo ou quase tudo
Menos o futuro amarrotado num bolso
Menos a esperança, menos o olhar.


José do Carmo Francisco

INVENTÁRIO DAS TRAVESSIAS,
 Antologia Poética, Organização Pedro Miguel Salvado, António Lourenço Marques, Moana Soto, Stefania di Leo, Carlos Serrão, Editora Labirinto, 2023, Fafe

14.11.23

A pedra

A mão -
que é flor do espírito.

Quem,
cercado em terra própria,

não deixará na mão
florir a pedra?

Junho, 2017

João Pedro Mésseder


A QUEM PERTENCE A LINHA DO HORIZONTE?
, Edição Página a Página - Divulgação do Livro, SA, Maio de 2020

9.11.23

[Decai co'a tarde a luz]

Decai co' a tarde a luz
quando o mundo declina o anoitecer
em que adormece.

Caem co' a calma as colinas breves
sobre as planícies azuis; Caem as folhas
como caíam aquelas aves que até hoje

caem, de poema em poema
e nem o seu corpo se destece
quando já na página de água navegam


Manuel Gusmão

Pequeno Tratado das Figuras, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2013

8.11.23

UMA VOZ VINDA DO OLIVAL

O eco veio do olival.
Eu estava crucificado no fogo
e dizia aos corvos: não me devoreis.
Eu poderia voltar a casa,
talvez chovesse
e a chuva pudesse...
apagar aquela madeira carnívora!

Um dia descerei da minha cruz.
Mas como poderei, então,
voltar a casa, nu e descalço?


Mahmud Darwich

O Jardim Adormecido e outros poemas, Selecção e tradução de Albano Martins, Campo das Letras, Editores, S. A., Porto, Maio de 2002

6.11.23

Vulgar

Do discreto cinismo que se alegra
com o ar de tristeza de quem passa,
ao abraço empolado que pespega
um beijo traiçoeiro na desgraça;

do encolher de ombros, como regra,
à crescente arrogância que perpassa
e balança entre o tom da cegarrega
e a malcriadez que embaraça,

às salvas: como está? - Assim-assim,
mais ou menos, cá vou, obrigadinho;
da cunha que se mete, porque sim,
à espera do favor, do favorzinho:

do muito que se faz e contrafaz
no país do vulgar tanto me faz.


© Domingos da Mota

3.11.23

Gaza - a ferro e fogo

Os vivos
não desistem
de viver
Os mortos também

Mohammed Al-As'ad


Por muito cerco cerrado
Por muitas bombas e bombas
Sobre um povo castigado
Com terríveis hecatombes
Por muito que os algozes
Com algum desembaraço
Acicatem as ferozes
Ocupações do espaço
Por muito que o ódio solte
A raiva desesperada
E a sanha de revolta
Acere o fio da espada
Por muito que a vingança
Espicace mil horrores
E o fiel da balança
Desvalorize os clamores

Por muita bomba assassina
Sobre Gaza - a ferro e fogo
Por muita carnificina
Por muito discurso torvo
Por muito que as crianças
Em vez de colo e de leite
Bebam o fel dos verdugos
E a céu aberto se deitem
Por muito pão proibido
Por muita água cortada
Por muito sangue vertido
Por tanta mulher matada
Por muito que os corpos fiquem
Sob os escombros inertes
Ou nasçam crianças mortas

Por muito que não despertes
Da cegueira selectiva
Que branqueia o morticínio
E vertas lágrimas sujas
De crocodilo à espera
Que o genocídio force
A suposta rendição:

Há um povo que resiste
À brutal ocupação

© Domingos da Mota




2.11.23

SABEDORIA DE CALÍGULA

Mandei-o descascar batatas,
respondeu-me que os astros auguravam bom tempo.
Decididamente era verdade
que o imperador fizera o seu cavalo cônsul.

1954

Jorge de Sena

Peregrinatio ad loca infecta, 70 poemas e um epílogo, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969

30.10.23

O poder

O poder que engrossa a voz
defendendo o sem sentido,
que se arroga porta-voz
do bem contra o inimigo

dando asas à cegueira
a que chama lucidez,
colocando-nos à beira
do abismo, como vês,

num mar de fogo e de fúria
duradouro que destrói
quem por baixo sofre a injúria
devastadora que mói

como se em mó do moinho
os grãos de trigo, inocentes
sob as bombas, um espinho
na garganta até aos dentes,

quando o poder continua
dantesco, de má memória,
será julgado na rua
ou apenas pela história?


© Domingos da Mota

28.10.23

As Bombas

Não há mais palavras a dizer
Só ficámos com as bombas
Que estouram dentro das nossas cabeças
Só ficaram as bombas
Que nos chupam o último sangue
Só ficámos com as bombas
Que dão lustro aos crânios dos mortos


Fevereiro 2003


Harol Pinter

Guerra, Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, Edições Quasi

22.10.23

O cerco

1.

O pão sangra na boca
mais seco que uma pedra:
o pão duro da revolta



2.

Matar a sede com sal
d'água salobra 
do mar

© Domingos da Mota



15.10.23

PERGUNTAS DO AMANHECER

– Minha mãe, minha mãe
o pão é vermelho porquê?
– Porque o trigo está
sangrando,
filho meu,
um sangue que não se vê...


10 de Março, 2022


Yvette K. Centeno

Ventanias
, edição Eufeme, Leça da Palmeira, Setembro de 2023

11.10.23

!

Porque vivemos o que vivemos
porque vemos o que vemos
porque fazemos o que fazemos
passarei a pente fino todas as folhas
jornais, poemas, artigos, cartas
boletins, discursos
e eliminarei deles
todos os pontos de exclamação


Murid Al-Barghuti

Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
, Selecção e tradução de Albano Martins, Asa Editores, S. A., Porto, Fevereiro de 2004