22.8.21

[mutações]





mutações

também tu
estás de passagem

peregrino sobre a terra
agora lagarta
ontem crisálida
amanhã borboleta


Manuel Silva-Terra



Eufeme n.º 20 magazine de poesia (Julho/Setembro 2021)

21.8.21

EM TODO O ACASO

Remancha, poeta,
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.

Não há «p'la certa», poeta!

Mas em todo o acaso acerta
Nem que seja a um verso por ano...


Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

18.8.21

[Poema]

para lá da cortina além da porta errada
silencioso e só está sentado
e lê num livro velho
a sua própria história


Manuel de Castro


EDOI LELIA DOURA antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa,
organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, Janeiro de 1985

15.8.21

[Não esbanjem comigo o odor da mirra,]

Não esbanjem comigo o odor da mirra,
nem ofereçam coroas de flores,
nem acendam a pira funerária,
tudo isso é desperdício; ofereçam-me
presentes, se quiserem, enquanto
estiver vivo - mas espalhar cinzas
no vinho torná-lo-á lama
e dele não beberão os mortos.

Anónimo

Poemas da Antologia Grega, versões de José Alberto Oliveira, Porto Editora, Fevereiro de 2018

13.8.21

[eles estão a morrer de todas as maneiras]

eles estão a morrer de todas as maneiras
mas diga-me: não há apenas uma só maneira:
a maneira cega?


Herberto Helder



Poemas Canhotos, Porto Editora, Maio de 2015

10.8.21

CASA

A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
refectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama.


Carlos de Oliveira


SOBRE O LADO ESQUERDO, Publicações Dom Quixote, Maio de 1969

9.8.21

[queria de ti um país de bondade e de bruma]

queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma

Mário Cesariny

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Março 2007

6.8.21

[E me disseste: vem. E havia]

E me disseste: vem. E havia
alguns despojos sobre a areia, algumas
ressentidas grinaldas
no limiar das têmporas. Havia
alguns gestos suspensos, um cofre
de esmeraldas vermelhas, um torpor
nos membros retardados. E havia
um colar para as mãos, uma colina
para os lábios e uma flor
intacta perfumando
o silêncio, à beira
de indizíveis planícies.

Albano Martins

Uma Colina para os Lábios, Edições Afrontamento, Porto, 1983

4.8.21

GULA

De faca e garfo chegamos à pupila,
devoramos a pele delicada da lágrima.
Prometemos não sofrer,
não sentir, não ceder.
Comemos mais abaixo o coração.


Maria F. Roldão

Eufeme n.º 20 Magazine de Poesia (Julho/Setembro 2021)

1.8.21

MESTRES



VIII


Eis, pois, os Mestres, os senhores da terra
dura e impermeável, gasta e morta,
os incansáveis Mestres dos destroços,
a suja maravilha dos humanos.


Hélia Correia


Acidentes
, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2020