30.11.16

MAL DE PÁTRIA

Se temos nove dez poetas
à escala europeia
ou só quatro ou mesmo  talvez
com muito boa vontade três

aflige-me bastante menos
que o problema do Serra:

quantas queijeiras restam
fiéis à rude bordaleira?
para onde vai Portugal?


                                                1985

Fernando Assis Pacheco


A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2006

27.11.16

fragmento primeiro

I


De que te vestes, corpo
a bando nado
da luz no teu país. De que te cobres?
Esquecido na água e sem
leitura. De que lado
passarás a viver
(ou, transigindo,
de que lado 
passarás a morrer, a clarear)?

Nuno Guimarães

OS CAMPOS VISUAIS, Iniciativas Editoriais, Lisboa, Maio de 1973

26.11.16

exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Mário Cesariny

CESARINY  UMA GRANDE RAZÃO, Assírio & Alvim, Lisboa, Março de 2007

24.11.16

A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesse partir.

António Gedeão

POEMAS ESCOLHIDOS, Antologia Organizada pelo Autor, Edições João Sá da Costa, Lisboa, Novembro de 1999

20.11.16

[Divido o fruto, a palavra dióspiro:]

Divido o fruto, a palavra dióspiro:
deus, na outra metade, o fogo. Sustém
a navalha, o gesto de talhar o garfo.
Observa os dióspiros, espantado: deus,
deus e o fogo, sabedoria dos gregos,
diante dos olhos em transitória nave.

Francisco Duarte Mangas

A FOME APÁTRIDA DAS AVES, Edição Modo de Ler

16.11.16

Os inquiridores

Está o mundo coberto de piolhos:
Não há palmo de terra onde não suguem,
Não há segredo de alma que não espreitem
Nem sonho que não mordam ou pervertam.

Nos seus lombos peludos se divertem
Todas as cores que, neles, são ameaças:
Há-os castanhos, verdes, amarelos,
Há-os negros, vermelhos e cinzentos.

E todos se encarniçam, comem todos,
Concertados, vorazes, no seu tento
De deixar, como restos de banquete,
No deserto da terra ossos esburgados.

José Saramago

Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Outubro de 1998

13.11.16

OS DOIS

Eu sou dois seres. 
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Manoel de Barros

POEMAS RUPESTRES, Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2004

10.11.16

Onfaloscopia

O seu umbigo é o centro
do mundo    do universo
visto por fora ou por dentro
do direito       ou do avesso:

e sendo o centro do mundo
sempre que gira    rodando
soberbamente              rotundo
onde quer que esteja e quando

é sem dúvida        o maior
dos umbigos e  tão grande
que o universo    em redor
do seu umbigo se expande


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Busílis, Dezembro 2018

9.11.16

[o ódio sopra uma bolha de desespero na]

o ódio sopra uma bolha de desespero na
vastidão do sistema do mundo do universo e explode
-- o medo enterra um amanhã sob o desgosto
e o ontem chega mais verde e jovem

o prazer e a dor são apenas aparências
(um a si se mostrando, a si se escondendo outro)
o único e verdadeiro valor da vida nenhum é
o amor faz a pequena diferença das coisas

e se aqui vier um homem para receber da senhora morte
o agora sem nunca e a primavera sem inverno?
ela tecerá esse espírito com os seus próprios dedos
e dar-lhe-á nada (se ele não cantar)

como há tanto mais do que o suficiente para nós os dois
querida          E se eu cantar tu és a minha voz,

E.E. Cummings

livrodepoemas, tradução, introdução e notas Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, Lisboa, Junho 1999

2.11.16

OS OLHOS DAS CRIANÇAS

Estes olhos vazios e brilhantes
que na criança se abrem para o mundo,
não amam,
não temem,
não odeiam,
não sabem como a morte existe.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

O amor, o medo, o ódio, a mesma morte,
e este desejo de possuir alguém,
os aprendemos. Nunca mais olhamos
com tal vazio dentro das pupilas.

São terríveis.
Porque a vida é isto.

1963.

Jorge de Sena

PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA, 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969