22.12.21

CARTUCHO DE CASTANHAS

Vem da infância
e de uma cidade molhada esse cheiro
ímpar de um pequeno carro de cor neutra
envolto em fumo. Brasas
no estalido de cascas aquecendo
as nossas mãos friorentas. O sabor
macio e doce confortava
as árvores despidas. Esvaziado o cartucho
ficava no corpo a quentura
de um abraço materno
ou beijo enamorado.

Inês Lourenço

As Palavras Beijam Sem Carga Viral, Editor Câmara Municipal do Porto - Museu da Cidade, Porto, agosto de 2021

20.12.21

PANCADAS SURDAS

É obra conhecer as nossas dificuldades
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.


De Akáthistos Deipnos, 1978

Michális Ganas


MANUEL RESENDE, A GRÉCIA DE QUE FALAS..., ANTOLOGIA DE POETAS GREGOS MODERNOS, Língua Morta, Fevereiro de 2021

19.12.21

PEDRA-FINAL

Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!

Para sempre? Não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.


Alexandre O'Neill



DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

16.12.21

[no mês de maio pescávamos]

no mês de maio pescávamos
bogas e trutas no rio olo
água fria água limpa
impaciente a brunir os seixos
no regresso em terras de basto
bebíamos vinho
o mundo parecia outro
como se fossemos tocados
pelo sopro da imortalidade


Francisco Duarte Mangas

As coisas comuns, Modo de Ler - Cruz Santos & Fernandes Marinho, Lda., Novembro de 2021

12.12.21

O Banqueiro

Não sendo ele Pessoa
nem O Banqueiro Anarquista,
em Durban ou em Lisboa,
adios hasta la vista!


© Domingos da Mota

11.12.21

SILÊNCIO

Há momentos em que tudo o que desejo
é o silêncio e seu bálsamo. Momentos
que a própria música conspurcaria.

Mas há silêncio e silêncio. O que apeteço
não é o silêncio que alguma autoridade
decreta, seja direcção-geral, escola, igreja.

O silêncio que ambiciono há-de ser
sereno como nuvens e ervas bravas
e água em repouso e asas imóveis
de borboleta.

Há-de ser como o doce cansaço
que, depois que o vento tem passado,
fica a cintilar sobre as coisas
que o vento alvoroçou.


A. M. Pires Cabral


Caderneta de Lembranças, Edições Tinta-da-China, Lda., Lisboa, Novembro de 2021

7.12.21

O RELÓGIO

- adereço conceptual para usar no pulso -


Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-me agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.

Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora


José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA
(5.ª edição), Editorial «Avante», Lisboa, 1994