22.3.21

A ÚLTIMA PARAGEM

O eléctrico passava ao longo das casas vermelhas.
As rodas nas torres das minas giravam
como carrosséis num parque de diversões.
Nos pequenos jardins cresciam as rosas sombreadas de fuligem,
nas pastelarias as vespas encarniçavam-se
sobre a cobertura dourada de um pastel.
Tinha quinze anos, o eléctrico deslocava-se
cada vez mais rápido por entre as habitações,
nos prados via malmequeres-dos-brejos amarelos.
Pensava que na última paragem
se desvendaria o sentido de tudo,
mas nada aconteceu, nada,
o condutor comia uma sandes com queijo,
duas velhotas falavam em voz baixa
dos preços, das doenças.

Adam Sagajewski

Sombras de Sombras, Selecção e tradução: Marco Bruno; revisão: Jorge Sousa Braga; prefácio: Adam Kirsch, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2017

19.3.21

À MINHA MANEIRA

Impossibilitado de escrever haikus
por não possuir a mentalidade minimal dum japonês

Queimo ainda bastantes palavras
ao explicar que me inclino sobre o vento
ou sobre o dorso de algum animal

Incapaz do gesto sábio
duma brisa
engulo o tempo à minha maneira

Não posso igualmente saber a savana
coisas tão simples que há nela
por exemplo a gazela
nada sei do distante e do remoto
entretenho-me por casa
a ver o sol com a minha peneira

Se mo pedirem defino harmonia
posso sempre mentir olimpicamente
e fazer haikus à minha maneira

João Habitualmente

Os Animais Antigos, edição objecto cardíaco - casa para as artes, Sociedade Unipessoal, Lda, Vila do Conde, Janeiro de 2006

14.3.21

LIGA PATRIÓTICA

Que homens tão sublimes em assembleias, repuxadas
As suíças,
Meticulosos, solenes, esses gestos
Redondos e ridículos,
Que envolvem o som de um mundo tão pequeno
E soleníssimo.

Madeiras enceradas com o bafo
Amarelento da respiração nacional do mando.
O país passa nas vozes, as casacas estremecem nos seus
púlpitos,
Meus amigos, a nação ergue-se
Agradecida.

Sento-me na rasa e desdourada sala do meu corpo,
Já sofri o bastante nos meus nervos doentes.
Apanho o pó das sílabas,
E recolho-me ao chão dos meus castigos:
Amar amargamente a pátria.

De norte a sul, nessa névoa de saudade e fingimento
O povo cala, a burguesia arranha,
A nobreza consente. Sou um civil da ética, falta-me
Provavelmente o baraço ao pescoço, o empenho
Das barbas.

Um gesto de grandeza pode ter a medida inútil
Dum mar árido de peixes,
Dum céu sem uma nuvem sobre o chão
Terrivelmente seco, sedento,
Se não soubermos perdoar a barbárie
À nossa volta.

É como se uma onda de vento se erguesse
Lenta mas fulminante contra o nosso perfil sonhado por outras
          vozes
Quiméricas
E a nossa própria voz não tivesse de súbito
Resposta
E tudo e todos fossem sempre só
Uma pergunta.


Armando Silva Carvalho

ANTHERO, AREIA & ÁGUA, Assírio & Alvim, Junho 2010

8.3.21

A DIVISIBILIDADE: A VISIBILIDADE A DOIS

A mulher divide-se em gestos particulares
o homem divide-se também. Se o átomo é
divisível só o poeta o diz.

A mulher divide-se em gestos
extremos coloridos arenosos destilados.

Dois homens são duas divisões de uma
casa que já foi um animal de costas
para o seu pólo mágico.

A divisibilidade da luz aclara os mistérios.
A mulher tem filhos. Descobrem-se
partículas soltas um dedo mínimo
o peso menos pesado da balança
um cabelo eloquente em desagregação.

Gestos estrídulos dividem a mulher
o homem divide-a ainda.


Luiza Neto Jorge

poesia 1960-1989, organização e prefácio de Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, Setembro 2001

5.3.21

TRAVESSA DOS GATOS

          à memória de Eugénio de Andrade


Para quê mais versos?
O poema está feito, cabe
inteiro nestas sílabas de pedra
onde gostei tanto de magoar os pés.

Correm ao sol de Fevereiro
- pretos, quase brancos
e malhados - os príncipes
desta terra, os únicos.

Não te atrevas a segui-los, dona morte.


Manuel de Freitas


JUROS DE DEMORA, Assírio & Alvim, Março 2007 (Exemplar N.º 317/400)