29.10.19

7. Na noite cega via

     Na noite cega via
só uma pedra;
no escuro, ínfima, estava:
era estátua, uma pedra;

     sem dentro nem trajecto,
sem o longe de um vento,
sem um punho nem funda,
em conjugação de estrelas.

     Como seria ela muro?
Na terra cor de terra,
sendo a noite de noite,
mergulhada em seu peso

     era uma pedra pedra.

José Bento

UM SOSSEGADO SILÊNCIO, com uma aguarela de António Cruz, Edições ASA, Porto, Março de 2002


 

18.10.19

Micro-conto em forma de haiku

Numa dieta rigorosa,
só comeu as vogais
da sopa de letras.

© Domingos da Mota

POEMA NÃO CERTIFICADO

Este poema não tem certificado de qualidade
Nem selo de garantia,
Veio parar-me à mão,
Cada vez mais vazia,
Com que escrevo,
Noite e dia,
O que devo
E não devo.

José Pascoal

BRANZA, Editorial Minerva, Lisboa, Agosto de 2019

13.10.19

Alguns gostam de poesia

Alguns -
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.

De poesia -
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.

Wislawa Szymborska

Alguns gostam de poesia - Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska, Selecção, introdução e tradução do polaco de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves,Cavalo de Ferro, Editores, Lda., Março de 2004

11.10.19

Tricórnio

23


Mau não ter prémio nenhum.
Pior nunca ter estado em mesa redonda
de um festival literário.

Francisco José Craveiro de Carvalho

Tricórnio, Edição Busílis (Tropelias & Companhia - Associação Cultural), julho 2019

8.10.19

ESPANTA-ESPÍRITOS

Neve sândalo ranúnculo
porcela madrepérola
bambu
eis as palavras de que se precisa

Depois
é só deixar correr a brisa

Jorge Sousa Braga

O POETA NU [poesia reunida], Assírio & Alvim, Junho 2007

7.10.19

O MEU MELHOR ÂNGULO

Prefiro o agudo. Muito menos o recto
e nunca o obtuso. O raso adormenta
todas as audácias e o adjacente agrega-nos
em parede mútua e indissolúvel. Assim,
é no estreito e resguardado vértice
do agudo que apetece ficar, abrigada
do rotundo e celebrado círculo.

Inês Lourenço

COISAS QUE NUNCA, &etc, Lisboa, Julho de 2010

5.10.19

DO CANTO DE DÉBORA (Jz 5,31)

Os que te amam sejam como o sol
no cimo do seu esplendor

José Tolentino Mendonça

A ESTRADA BRANCA, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2005

1.10.19

[A elipse à mão]

A elipse à mão
ficou de traço grosso.
O lápis desleixado culpou a afiadeira.

Francisco José Craveiro de Carvalho

As sapatilhas de Usain Bolt e outros tercetos, Companhia das Ilhas, Julho de 2015