27.12.17

O MORTO: SUA ASTRONOMIA

A astronomia do morto é um grito 
sem resposta. Necessita de um computador
que lhe diga como descer da constelação:
alfabetos escadas da dor. Os olhos entendem sem ouvir

as suas equações do movimento: cinemáticas!
Quanto a mim bastava-lhe a tristeza: peso
cadente das estrelas e os hieroglifos eternos
das esquinas da história e da histeria.

Rancor enxertado por decretos e votos e hinos.
É terrível ser homem moribundo. A morte
levanta a sua constelação para que eu  morra.
Nem há mesmo outra astronomia.

Alexandre Pinheiro Torres

A Flor Evaporada, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984

18.12.17

Sexto soneto de Natal

Não digo do Natal que é da natura
das coisas ser assim, sabendo nós
que a fuga para a frente se afigura
um modo de esquecer quem não tem voz,
mesmo quando os sem voz estão na sopa
dos pobres que se serve nesta altura
e figuram na fila filantropa
que avança com flashes à mistura;
não digo do Natal que a natureza
das coisas tem de ser como se vê,
um modo de assear, fazer limpeza
ao chão da consciência de quem crê
piamente na caridadezinha,
por amor do Natal que se avizinha.


© Domingos da Mota



16.12.17

TRESPASSE

1.


Ainda corri à janela. Já só lhe apanhei a saia
plissada a entrar no autocarro,
fechava-se-lhe a porta
hidráulica nas costas.
E o telemóvel sem bateria,
como avisá-la de que se enganou
e levou a minha pele?
Revisto-me da dela, aguardo.
A sua nudez retempera-me.
Ponho um cd do John Surman,
não há-de ser grave e de alergia
provámos esta noite estarmos vacinados.
Qual dos corações me pulsa
no céu da boca?

António Cabrita

Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, Coisas de Ler Edições, Lda., Setembro de 2017

15.12.17

Poema para 2017

Agora que a memória já se perde
e não encontra a fórmula exacta,
no momento preciso, quando deve
distinguir uma ideia abstracta
de uma noção concreta, por exemplo,
que dia da semana, de que mês,
de que ano da graça, qual o duplo
dos amigos reais, se mais que três;
e uma vez que me esqueço até dos nomes
de tantos que comigo trabalharam,
apelidos, alcunhas, sobrenomes,
tendo em conta os neurónios que murcharam,
antes que se apague mais algum,
bem-vindos sejam os meus setenta e um


© Domingos da Mota


2.12.17

AUSÊNCIA

Uma semana depois,
chego a casa, conto
os gatos, o número
confere. Não mais

dispéptico, nem com
bílis menos escura,
retomo o ritmo de arrotear
a vida; alguém com maior

convicção poderia castigar
aquilo por que espero --
a mesma dança, a mesma
música, na esperança

inglória de ignorar a morte.

José Alberto Oliveira

Telhados de Vidro, N.º 21 . Averno, Lisboa, Agosto. 2016