31.3.23

Rigor filosófico

o contrário das minhas dúvidas
não são as minhas incertezas
ao contrário

o contrário das minhas ideias
não tem nada a ver
com as minhas ideias ao contrário

o contrário do contrário
nada diz do contrário


E. M. de Melo e Castro

POEMAS TARDIOS, Organização de Edson Cruz, SR TESTE Edições, Abril 2022

25.3.23

MIGRAÇÃO INTERIOR

A medida dos ventos, o número
das imagens, o volume do canto,
deram-me a exacta direcção
do olhar que procura os pássaros.

Talvez porque o seu rumo seja
esse que tomei, outrora, para
chegar ao centro, e aí pegar nessa
mão que se abriu para a luz do sol.

Muitas vezes, então, a cinza
e o ouro se juntaram, e essa poeira
de brilhos e de treva caiu à nossa
volta, desenhou as nossas sombras.


Nuno Júdice

Uma Colheita de Silêncios, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2023




22.3.23

VERTIGEM MUITO ANTIGA - MAR

quem ainda não escreveu sobre os gregos
que ponha o dedo no mar


João Habitualmente

Estátuas na Praça
, Apuro Edições, Porto, Setembro 2022




20.3.23

Às formigas faço perguntas

Às formigas faço perguntas
e por mais perguntas que faça
nada respondem
passam e nem reparam
indiferentes à chuva
ao sol
direcção ao nada -
Essa a beleza do mundo.


Ivo Machado

Miseriae, Guerra e Paz, Editores, Lda., Novembro de 2022

19.3.23

Súplica e é Domingo

A casa fecha - se de silêncio
assim o silêncio se fecha de casa

nada mais há para arder
a não ser esta metáfora sufocante
onde o fumo já não emerge das trempes
nem o pote aquece a sopa.

É tarde, eu sei
o forno do pão fechou-se
lacrado a bosta
só nos resta o pontapé à porta

A velha masseira de embolar a
fornada carunchou
e a pazinha de a dobar também

Só na tua mão, mãe,
principia o sinal
coberto pelo teu beijo.


Aurelino Costa

Casa e logradouro, Porto Editora, Fevereiro de 2023

14.3.23

O BARULHO DE DEUS

I


Ergo na cabeça a catedral da noite:
as pedras do pensar, os arcos do sentir,
as escassas frestas do meu ser vitral.
Quando a luz chega o ruído começa. Pode ser a guerra,
ou a matéria a clamar por clemência.
Mas é sempre um duelo
pela sobrevivência.


Armando Silva Carvalho

Ana Marques Gastão, António Rego Chaves, Armando Silva Carvalho TRÊS VEZES DEUS, Assírio & Alvim, Dezembro 2001

11.3.23

Quatro haicais

1

Em terra
o meu farol
é o mar.


2

Ponte de D. Luís --
aqui não existe abismo
que me feche os olhos.


3

Mudança de hora.
Atraso o relógio e sorrio --
com um ar estúpido.


4

Não é mais escura
que a do branco a sombra
do cisne negro.


João Pedro Mésseder


Acanto - Revista de Poesia - número 6, Edição e propriedade: Hora de ler, Unipessoal Lda., Leiria, Dezembro de 2022

8.3.23

POEMA

Um poema no inverno,
uma planta na primavera,
um insecto no verão,
um pássaro no outono,
o resto do tempo sou uma mulher.


Vera Pavlova

[Rússia, 1963-...]

Quando a Lua Desce à Terra, traduções de poesia de Jorge Sousa Braga, Edição Língua Morta, Fevereiro de 2023:14

6.3.23

QUANDO UM PAÍS

Quando um país de - em geral - pessoas simpáticas
se torna - lentamente - fascista,
as pessoas simpáticas não se apercebem dessa transformação
todas de uma vez.

Como quando uma pessoa que conhecemos intimamente
passa, ao nosso lado, através
de um imperceptível processo de envelhecimento.
Imperceptivelmente, novas rugas
assustadoramente profundas, cortam a pele.

As pessoas simpáticas acenam com a cabeça, quando se
encontram,
e tentam, cada vez mais, baixar os olhos,

até que finalmente, levantá-los, se torna um ato desumano.


Lyudmila Khersonskaya


(versão de Jorge Sousa Braga, a partir da tradução do ucraniano para inglês de Valzhyna Mort,
colhido no mural do Facebook de Joana Beleza, 5 de Março de 2019)