28.3.18

ALGUNS POEMAS PORTÁTEIS

3.

um estudioso de munch
depois do roubo de «o grito»
criticou noutros historiadores da arte
a preocupação em restaurar o quadro
que não tinha voltado intacto
das mãos de ladrões

este estudioso defendia
que munch não ia querer saber de restaurar o quadro
nódoas negras e escoriações
eram apenas a marca de mais uma viagem
e munch ficaria contente em manter o quadro como estava

o estudioso pensava que munch não ia querer saber
porque o pintor amava coisas baratas
e pintava as suas obras com materiais baratos
e mantinha os seus cães perto da sua arte

Tatiana Faia

Um Quarto em Atenas, Edições Tinta-da-china, Lda., Janeiro de 2018

25.3.18

As palavras são coisas, 2

Se a tua boca as diz
e no teu rosto as vejo,
as palavras são coisas
quando as fere o desejo.

E quando dizes mar,
ou quando dizes norte,
não sei se não me acerco
de um bocado de morte.

Quando dizes barco,
ou quando dizes esfera,
há águas que transbordam
e inundam a terra.

As palavras são coisas,
as palavras são um perigo,
se acaso as pronuncias
quando não estás comigo.

E quando tu adormeces,
muda num sonho fundo,
tudo se desvanece
e deixa de haver mundo.

Bernardo Pinto de Almeida

A Ciência das Sombras, Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018

19.3.18

[constrói só o fim]

constrói só o fim
do poema

para o resto
é tarde demais

José Anjos

somos contemporâneos do impossível, abysmo, Lisboa, Dezembro 2017

14.3.18

LEITURA DE JORNAL

Enrolado pelas nuvens duma eternidade,
debruado pelas franjas de catástrofes cósmicas,
soletrado numa lentidão de milénios pela voz sintetizada e virtual
de Stephen Hawking,
podes tu alguma vez imaginar todo o espectro poético
da explosão do campo de Higgs?

100 000 milhões de gigaelectrões-volts não são bastantes
para tornar meta-estável
o campo desse senhor dos buracos negros,
e fazer dele
uma bolha de vácuo.

Tudo à velocidade da luz, é claro, que a partícula de deus
não é um caracol que vá deslizar
a sua vegetal e mansa paciência pelas folhas
do universo.

Mas a criatura irónica, imobilizada,
esse génio oráculo que fala através dos músculos da face,
esse cérebro de engenhos que desdenham de deus,
concentra no seu sorriso um fulgor natural,
talvez único,
e pretende, diz ele, seduzir as enfermeiras
com o sotaque do texas que lhe sai da máquina falante.

É um riso de fichas virtuais, e as meninges tremem
entre placas, galáxias, anjos megalómanos, funcionários divinos,
engenheiros do eterno e promotores da vida futura
na imensidão devoluta dos planetas.

Abençoado profeta, só eu não sei  por que deuses,
fruto absurdo das matemáticas dos tempos,
és o trânsfuga da história,
a imagem ambulatória do belo, próxima verdade de nós,
futuro reprodutor no universo.

Armando Silva Carvalho

A SOMBRA DO MAR, Assírio & Alvim, Julho 2015

12.3.18

Suite sem vista

V


Era o tempo das cerejeiras agressivas a avançar
pela rapariga dentro.

As paredes falavam, na suite sem vista,
palavras a avançar

pela rapariga dentro.

A rapariga cobriu-as com papel, folhas
arrancadas ao grande livro fechado

à chave
na gaveta da palavra.

Inês Fonseca Santos

Suite sem vista, Abysmo, Lisboa, Janeiro 2018

1.3.18

[Quem esculpiu o Amor]

Quem esculpiu o Amor
e o colocou junto
desta fonte, pensaria
que poderia subjugar
com água, tal fogo?

Zenodotus

POEMAS DA ANTOLOGIA GREGA versões de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Porto Editora, Fevereiro de 2018