24.11.12

ARITMÉTICA EMOTIVA

Minhas duas irmãs éramos três,
minha mãe e meu pai éramos cinco.
Se existe, sabe Deus como se fez
a nossa casa, com amor e afinco.

Cada um eram cinco duma vez;
eu, à distância, ainda bem o sinto.
A alegria se fez e se refez:
todos brincavam. Hoje só eu brinco

atirando piropos à saudade,
que devolve em imagens. É a maneira
de refazer a tímida unidade

em que nos reunimos de algum modo.
Mas é apenas o fumo da fogueira,
vestígio vago do que foi um todo.

Armando Pinheiro

UMA ANTOLOGIA, Selecção e prefácio de Manuel António Pina com um desenho de José Rodrigues, ASA Editores, S.A., Porto, 2003

19.11.12

Mil Novecentos e Oitenta e Quatro

Recolhemos o gato
na madrugada de sábado,
recém-nascido, ainda com os olhos fechados.

Como uma mãe a um filho,
vigiamos-lhe o sono,
compramos um biberão e leite em pó,
uma tetina,
uma manta de reduzidas dimensões,
branca,
com um desenho negro no dorso,
para lhe lembrar a raça.

Não tendo resistido,
morreu serenamente,
num súbito vagido
e o pêlo encharcado,
quem sabe se pelo esforço
da grande travessia.

Por última mortalha,
metemo-lo num sobrescrito,
para continuar a viagem.

Amadeu Baptista

açougue, &etc, Lisboa, Junho de 2012

16.11.12

Ciclo

Abre o caruncho a rede, o labirinto
De escuras galerias que enfraquecem
A rijeza do cerne resinoso.

Toda a madeira passa nas mandíbulas
Dos insectos roazes, se converte
Em dejectos de pó, remastigados.

Tronco vivo que foi, agora morto,
Tornará o barrote à insondável
Matriz de que outra árvore se alimenta.

José Saramago

Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Outubro de 1998

15.11.12

[Pode ser esta a hora]

Pode ser esta a hora
de um prodígio
ou de uma sombra funesta

António Ramos Rosa

Em torno do imponderável, Editora Licorne, Lisboa, Outubro de MMXII

13.11.12

Greve


o poema "greve (1962)", de Augusto de Campos

P.S.: Amanhã este blogue vai fazer greve.

11.11.12

NÃO ME MOSTRES NENHUM NORTE

Não me mostres nenhum norte
nem estradas para lá:
são tudo embustes.

Mostra-me antes pedras, folhas mortas
de Outono atapetando o chão das matas,
voos de libelinha rasando o sol poente,
cândidas risadas infantis.

Quero eu dizer: mostra-me coisas
daquelas que se corrompem sem pressa.

A. M. Pires Cabral

COBRA-D´ÁGUA, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, Outubro de 2011