24.8.22

enumeração

há palavras da mesma sorte do osso, néons brancos
ressonantes,
inócuos fragmentos d'orvalho, cães-guia do medo
abocanhando de a a z, o brilho rendoso do silêncio:

anjo baraço contagem deus epitáfio foice gárgula
hospício intervalo jusante lâmina morte nome óbolo
patíbulo querosene ruína salmo talhão uivo vazio
xisto zumbido_____________________________


Luís Filipe Pereira

elogio da espera [61+ 43 poemas], Poética Grupo Editorial, Lisboa, julho de 2022

21.8.22

AZUL AR

azul mais azul que todo o azul do mar
azul mais azul que todo o azul do mundo
que azul tão azul tinha
ali o azul do céu
para onde azulou o passarinho meu


Alexandre O'Neill

ANOS 70 poemas dispersos
, Assírio & Alvim, Outubro de 2005




19.8.22

INFERNO

2


Que dizer deste tempo
em que falo sozinho,
rodeado de mar que é só ausência
e espelho do céu mudo?
Luz? Que luz? Que sol? Que cor
inunda este silêncio de hospitais
e ambulâncias velozes?
A cor da guerra,
da cidade vazia,
a cor do medo,
a cor em chamas
daqueles que se atiram para diante
e tentam devolver a gente
às suas casas brancas?


Nuno Dempster

LIMBO, INFERNO E PARAÍSO 
TRÊS ESTADOS APÓCRIFOS, 
Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2022

13.8.22

ESCALEIRAS DE GRANITO

Ao longo de incontáveis gerações.
tamancos insistentes foram desgastando
alguns dos degraus de menor dureza.

Mas não eliminaram a sábia proporção
e o ritmo do conjunto -
que continuam lá, desafiando
tamancos de outras tantas gerações.

É assim o granito: perdurar
está-lhe na massa do sangue.


A. M. Pires Cabral

Caderneta de Lembranças. Edições Tinta-da-China, Lda., Lisboa, Novembro de 2021

10.8.22

SEM NADA DE MEU

Dei-me inteiro. Os outros 
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


Rui Knopfli


Uso Particular (poemas escolhidos de Rui Knopfli)
, edição do lado esquerdo, Coimbra / Fundáo,  Julho de 2017

RUMOR DE ÁGUA

Rumor de água,
na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão. 

Rumor de água
no tempo e no coração.

Rumor de nada.


Carlos de Oliveira


TRABALHO POÉTICO, Livraria Sá da Costa Editora, 3.ª edição, Lisboa, 1998

9.8.22

migração

Ah
não me venham dizer
oh
não quero saber
ah
quem me dera esquecer

Só e incerto é que o poema é aberto
e a Palavra flui inesgotável!


Mário Cesariny

CESARINY  UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Março 2007

7.8.22

'O Som que os Versos Fazem ao Abrir'

                    a Ana Luísa Amaral


Nunca falei
Com ela:
Vi-a, li-a,
Ouvi-lhe apenas

O Som que os
Versos
Fazem ao

Abrir os poemas.



Domingos da Mota

6.8.22

ELECTRICIDADE

Mal fechada a torneira
e no silêncio
o ruído invasor: uma gota
pequena, regular

Como um prego mental
dilacerando: agudo o som
da água. Em tortura a memória,
o espaçamento de aguardar
outra gota

outro chicote azul
na tempestade


Ana Luísa Amaral

E TODAVIA
, Assírio & Alvim, Abril de 2015

4.8.22

HERACLITO

'Os estorninhos nunca voam duas vezes
no mesmo céu', poderia ter dito Heraclito,
se o ouvíssemos


Amadeu Baptista

Escrito na Grécia, Edições Afrontamento, Porto, Junho de 2022