29.4.20

NO MESMO LUGAR

(1929)


Casas, cafés e bairro que me rodeais;
que vejo e por onde, há anos e anos, me passeio.

Criei-vos na alegria e nos pesares:
com tantas circunstâncias, com tantas coisas.

E sois-me agora sensação pura e inteira.

Konstantinos Kaváfis

KONSTANTINOS KAVÁFIS 145 POEMAS, Tradução e apresentação de Manuel Resende, FLOP, Outubro de 2017

25.4.20

«QUEM A TEM...»

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade.
É quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena

ÀS VEZES SÃO PRECISAS RIMAS DESTAS MANCHMAL BRAUCHT MAN SOLCHE REIME/POESIA POLÍTICA PORTUGUESA E DE EXPRESSÃO ALEMÃ POLITISCHE POESIE IN PORTUGAL UND IM DEUTSCHSPRACHIGEN RAUM (1914-2014) [Obras de Jorge de Sena, Poesia II, Edições 70, Lisboa 1988], Org. Goethe-Institut Portugal, Selecção de Poemas Joachim Sartorius, Fernando J. B. Martinho, João Barrento, Helena Topa, Tinta-da-China edições, Agosto de 2017

20.4.20

Mundo

MUNDO
a tactear-te: interroga
os seus pontos duros,

a amêndoa cercada de pregos: junto dele
assegura-te
que voltas a ti, pelas tuas
margens sensíveis à luz.


Paul Celan

A Morte É Uma Flor, Poemas do Espólio, Tradução, posfácio e notas de João Barrento, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1998


19.4.20

[Uma paralela gritou-lhe de longe:]

Uma paralela gritou-lhe de longe:
Não nos podemos encontrar.
Não quero que nos confundam.

Francisco José Craveiro de Carvalho

As sapatilhas de Usain Bolt e outros tercetos, Companhia das Ilhas, Junho de 2015

12.4.20

PÁSSARO EM QUEDA NUM LUGAR SAGRADO

Naqueles dias
vimos o pássaro em queda
num lugar sagrado
Voou com asas todas brancas
e uma cauda como leque de sol
Vimos o remoto relâmpago
o susto do baque
nos vidros mais comuns
a morte, ilusão de transparências
Abandonou outras imagens
idênticas asas perdidas
a glória fulminada
o risco do sangue

E vimos a inspiração do quadro
os homens e as mulheres
num canto do mundo
respirando a luz
como se fosse o silêncio inteiro
Contemplavam depois a própria cegueira
prisioneiros de um pó dourado
com os pés enleados em raízes
do mesmo vermelho vivo

Ficava ao largo
o sacro pescador
absorto na troca das marés
um sifão turvo de peixes
espelhos de espelhos
Prende nas suas redes
o ar da tempestade
lança-as sobre o vazio
o mais submerso mar

José Manuel Teixeira da Silva

Música de Anónimo [poesia, 2001-2009], Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Janeiro de 2015

7.4.20

[A flor tem linguagem de que a sua semente não fala]

A flor tem linguagem de que a sua semente não fala.
A raiz não parece dar aquele fruto.
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem.
Retirada a linguagem
a semente é igual a flor
a flor igual a fruto
fruto igual a semente
destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.

José de Almada Negreiros

Poemas Escolhidos, Assírio & Alvim, Novembro de 2016

O AR APENAS

Donde
te vem
o sono
carne
de febre
ainda
não contida
febre
funesta
que ultrapassa
o som
avião vivo
que voa
sob
o peito
das aves
que no vento
dispersam
todo
o pranto?
O ar
apenas
rarefaz
as lágrimas
bebe
o ácido
feroz
que nem
as nuvens
vivas
o algodão
das penas
retém
no tempo
na rigidez
dum corpo.

Armando da Silva Carvalho

OS OVOS D'OIRO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro de 1969

4.4.20

[Fosse corvo, melro, pomba]

Fosse corvo, melro, pomba,
fosse milhafre ou gaivota,
fosse abetarda ou a sombra

de uma ave ignota,
fosse um abutre, um pardal,
um falcão, uma andorinha,

fosse uma erva daninha,
mas é um vírus -
letal.


© Domingos da Mota

3.4.20

O MEDO

Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?

Manuel António Pina

POESIA REUNIDA (1974-2001), Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 2001