31.1.21

A crucificação pelas imagens


Esquecemos as palavras,
as inscrições na pedra,

o espelho do mundo
nos ecrãs de plasma --

a crucificação pelas imagens.



Paulo Teixeira


A Comoção do Mundo, Editorial Caminho, Lisboa, 2020

27.1.21

Paisagem

PAISAGEM com seres-urna.
Conversas
de boca de fumo para boca de fumo.

Eles comem:
a trufa-demente, um pedaço
de poesia não soterrada,
encontrou língua e dente.

Uma lágrima corre de volta para o seu olho.

A metade esquerda, órfã
da vieira -
ofereceram-ta,
depois ataram-te -
ilumina o espaço à escuta:

o jogo de tijolos contra a morte
pode começar.

Paul Celan

Não Sabemos mesmo O Que Importa - Cem Poemas, Tradução e Posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2014

17.1.21

Peregrinatio ad loca abjecta

     

     Estão podres as palavras - de passarem
     por sórdidas mentiras de canalhas
     que as usam ao revés como o carácter deles.

     Jorge de Sena



Quem aclama e dá palco
a tanta velhacaria?
Quem no fundo, lá no alto
da solerte soberbia,

incentiva o insulto,
acicata a picardia,
porventura de teúda
e manteúda perfídia?

Mas que polvo financia
os grunhidos e ameaças,
e engorda enquanto cria
uma teia de trapaças?

© Domingos da Mota

12.1.21

RECEITA DE POEMA


Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E, depois que tudo matasse,
morresse do próprio veneno.

Antonio Carlos Secchin

Desdizer, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Abril de 2018

3.1.21

ELEGIA



Nunca, como a teu lado, fui de pedra.


E eu que me sonhava nuvem, água,
brisa sobre a folha,
fogo de mil cambiantes labaredas,
apenas soube jazer,
pesar, que é o que sabe fazer a pedra
à volta do pescoço do afogado.


*


ELEGÍA


Nunca, como a tu lado, fui de piedra.


Y yo que me soñaba nube, agua,
aire sobre la hoja,
fuego de mil cambiantes llamaradas,
sólo supe yacer,

pesar, que es lo que sabe hacer la piedra
alrededor del cuello del ahogado.


         En la tierra de en medio, 1972

Rosario Castellanos


Poemas Escolhidos, Tradução, selecção e notas de Jorge Melícias, Prefácio de José Rui Teixeira, Antígona Editores Refractários, Junho 2020