27.12.17

O MORTO: SUA ASTRONOMIA

A astronomia do morto é um grito 
sem resposta. Necessita de um computador
que lhe diga como descer da constelação:
alfabetos escadas da dor. Os olhos entendem sem ouvir

as suas equações do movimento: cinemáticas!
Quanto a mim bastava-lhe a tristeza: peso
cadente das estrelas e os hieroglifos eternos
das esquinas da história e da histeria.

Rancor enxertado por decretos e votos e hinos.
É terrível ser homem moribundo. A morte
levanta a sua constelação para que eu  morra.
Nem há mesmo outra astronomia.

Alexandre Pinheiro Torres

A Flor Evaporada, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984

18.12.17

Sexto soneto de Natal

Não digo do Natal que é da natura
das coisas ser assim, sabendo nós
que a fuga para a frente se afigura
um modo de esquecer quem não tem voz,
mesmo quando os sem voz estão na sopa
dos pobres que se serve nesta altura
e figuram na fila filantropa
que avança com flashes à mistura;
não digo do Natal que a natureza
das coisas tem de ser como se vê,
um modo de assear, fazer limpeza
ao chão da consciência de quem crê
piamente na caridadezinha,
por amor do Natal que se avizinha.


© Domingos da Mota



16.12.17

TRESPASSE

1.


Ainda corri à janela. Já só lhe apanhei a saia
plissada a entrar no autocarro,
fechava-se-lhe a porta
hidráulica nas costas.
E o telemóvel sem bateria,
como avisá-la de que se enganou
e levou a minha pele?
Revisto-me da dela, aguardo.
A sua nudez retempera-me.
Ponho um cd do John Surman,
não há-de ser grave e de alergia
provámos esta noite estarmos vacinados.
Qual dos corações me pulsa
no céu da boca?

António Cabrita

Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, Coisas de Ler Edições, Lda., Setembro de 2017

15.12.17

Poema para 2017

Agora que a memória já se perde
e não encontra a fórmula exacta,
no momento preciso, quando deve
distinguir uma ideia abstracta
de uma noção concreta, por exemplo,
que dia da semana, de que mês,
de que ano da graça, qual o duplo
dos amigos reais, se mais que três;
e uma vez que me esqueço até dos nomes
de tantos que comigo trabalharam,
apelidos, alcunhas, sobrenomes,
tendo em conta os neurónios que murcharam,
antes que se apague mais algum,
bem-vindos sejam os meus setenta e um


© Domingos da Mota


2.12.17

AUSÊNCIA

Uma semana depois,
chego a casa, conto
os gatos, o número
confere. Não mais

dispéptico, nem com
bílis menos escura,
retomo o ritmo de arrotear
a vida; alguém com maior

convicção poderia castigar
aquilo por que espero --
a mesma dança, a mesma
música, na esperança

inglória de ignorar a morte.

José Alberto Oliveira

Telhados de Vidro, N.º 21 . Averno, Lisboa, Agosto. 2016

30.11.17

[Tem o cheiro do pão]

Tem o cheiro do pão
acabado de cozer
no forno de lenha

Sobre a mesa
aninhados
os frutos acabados de colher

Em silêncio
as mãos
seguem essa luz

Manuel Silva-Terra

SER CASA, Editora Licorne

29.11.17

OS BÁRBAROS

Nós é que éramos os bárbaros.
Pensando em nós é que vocês tremiam nos vossos palácios.
Era por estarem à nossa espera que o vosso coração batia desordenadamente.
Das nossas línguas é que vocês diziam:
talvez se componham só de consoantes, 
de frufus, sussurros e folhas secas.
Nós é que vivíamos nas florestas negras.
De nós é que tinha medo Ovídio em Tomi,
Nós é que adorávamos deuses com nomes
que vocês não conseguiam pronunciar.
Mas também nós conhecemos a solidão
e a angústia, e desejámos a poesia.

Adam Zagajewski

Sombras de Sombras, Selecção e tradução, Marco Bruno, revisão, Jorge Sousa Braga, prefácio, Adam  Kirsch, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2017

18.11.17

As coisas

Há em todas as coisas uma mais-que-coisa
fitando-nos como se dissesse: "Sou eu",
algo que já lá não está ou se perdeu
antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.

Em certas tardes altas, absolutas,
quando o mundo por fim nos recebe
como se também nós fôssemos mundo,
a nossa própria ausência é uma coisa.

Então acorda a casa e os livros imaginam-nos
do tamanho da sua solidão.
Também nós tivemos um nome
mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.

Manuel António Pina

COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Outubro 2011

6.11.17

A FONTE

Com voz nascente a fonte nos convida
A renascermos incessantemente
Na luz do antigo Sol nu e recente
E no sussurro da noite primitiva

Sophia de Mello Breyner

11 POEMAS, movimento poesia, distribuições movimento, lda., Lisboa, Maio de 1971

29.10.17

24. Agarrámos o tempo

24. Agarrámos o tempo
Com cordas
De esticar memórias
Solavanco branco
Na retina de uma idade
Insubmissa
Tenho por bússola
A inquieta sede
Vapor de cinzas
Na claridade transparente
De águas límpidas

Leonora Rosado

A FENDA NO SANGUE, Editora Licorne

12.10.17

[Deu por si]

Deu por si
(arranjar um adjectivo para aqui)
no fundo da vida.

Francisco José Craveiro de Carvalho

Quatro Garrafas de Água, Ilustrações de João Sobral, Companhia das Ilhas, Setembro de 2017

4.10.17

VARIAÇÃO

Depois da morte que realidade
é a de termos existido? Há

porventura um passado para a morte?
O que é ter existido quando o real

se moveu para o mundo seu contrário?
Vive ainda a linguagem

quando os órgãos da fala que produzem
o canto se perderam e os lábios

vivem só na memória de por eles
passarem as palavras?

Gastão Cruz

EXISTÊNCIA, Assírio & Alvim, Setembro 2017

30.9.17

A estação impossível

O poema exprime-se em frases entrecortadas
linhas da corrente, irrisórias explosões
mas espera qualquer coisa
suficientemente brilhante
qualquer coisa
para lá dos caudais escoados
que no alto erga
a estação impossível
esse momento em que a língua dos homens
não possa mais mentir

José Tolentino Mendonça

Teoria da Fronteira, Assírio & Alvim, Maio de 2017

15.9.17

SEGUNDO RETRATO

De cerúleo gabão, não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto:

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso;
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto:

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes:

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto -- é o Bocage!

Bocage

POESIAS, Os Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa, Colecção dirigida por Vasco Graça Moura, Editora Planeta DeAgostini, S.A., Lisboa, 2003

14.9.17

a escrita - Paulo da Costa Domingos

MEDIDAS TOMADAS


A fina película que aparta
da Igreja o Estado, propícia
aos líquidos conteúdos, ao alívio
do tenso músculo, às
ideias feitas, rompeu
e o verbo se fez carne
e a carne, apetecível, encheu-se
de um pó e friccionou-se com
os santos óleos, e...
a Humanidade é aquilo
que hoje bem sabemos.

Paulo da Costa Domingos

a escrita, &etc, Lisboa, Março de 2010

12.9.17

DE LONGE

Vêm de longe.
Sobre as mãos, sobre o chão caem.
Nada pode detê-las.
Entram pelo sono: redondas
grossas amargas.
E cintilantes.
Estrelas. Ou lágrimas.

Eugénio de Andrade

PEQUENO FORMATO, edição fora do mercado destinada aos amigos da Fundação Eugénio de Andrade, Porto, Fevereiro de 1997

2.9.17

Universidade de verão

Uivos, latidos,
pios, crocitos
& cacarejos,

guinchos & gritos
graves & agudos,

quem os ateia,
incita o palco
e a plateia?


Domingos da Mota

1.9.17

POSTERIDADE

Um dia eu, que passei metade
da vida voando como passageiro,
tomarei lugar na carlinga
de um monomotor ligeiro
e subirei alto, bem alto,
até desaparecer para além
da última nuvem. Os jornais dirão:
Cansado da terra poeta
fugiu para o céu. E não 
voltarei de facto. Serei lembrado
instantes por minha família,
meus amigos, alguma mulher
que amei verdadeiramente
e meus trinta leitores. Então
meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.

Rui Knopfli

USO PARTICULAR (POEMAS ESCOLHIDOS) com prefácio de António Cabrita, do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Julho de 2017

27.8.17

GÊNESE II

no princípio era o verbo
uma vaga voz sem dono
vagando pela via láctea.

depois veio o sujeito
e junto com ele todos
os erros de concordância.

Gregorio Duvivier

É AGORA COMO NUNCA ANTOLOGIA INCOMPLETA DA POESIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA, Organização e apresentação de Adriana Calcanhotto, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, Abril de 2017

20.8.17

HISTÓRIA

A  história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não-ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.

Antonio Cicero

A Cidade e os Livros, prefácio de José Miguel Wisnik, QUASI EDIÇÕES, Fevereiro de 2006


8.8.17

MANIA DO SUICÍDIO

Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados 
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.

Rui Knopfli

USO PARTICULAR (POEMAS ESCOLHIDOS) com prefácio de António Cabrita, do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Julho de 2017

29.7.17

PARTE POÉTICA

Não é fácil ser poeta o tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos
por dia, pois levanto-me tarde e primeiro
há que lavar os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.

E chegar à noite a casa para a prosa do jantar,
o estrondo das notícias, a louça por lavar.
Concluindo, só pelas duas da manhã
começo a despir o fato de macaco, a deixar
as imagens correr, simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.

José Miguel Silva

ÚLTIMOS POEMAS, Averno, Junho de 2017

20.7.17

Toada dos batráquios

Estes batráquios,
sapos e rãs, 
velhos terráqueos, 
arrastam fãs,

mesmo de louça, 
de louça fina, 
há quem  os ouça 
a coaxar, e com verrina;

com pés de barro 
sobre os balcões,
de olho avaro, 
camaleões, 

são uns racistas 
torpes, xenófobos 
e arrivistas.
Fossem macrófagos 

contra as bactérias, 
as inimigas.
Mas os batráquios 
são candidatos:
.
nem-sei-que-diga.

© Domingos da Mota




19.7.17

Poemas Quotidianos

10


Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz
torna mais belo
e mais útil
cada objecto

António Reis

Poemas Quotidianos, Prefácio Fernando J. B. Martinho, Posfácio Joaquim Sapinho, Lisboa, Tinta-da-China, Julho de 2017

15.7.17

Não o chamo pelo nome

   Não, não vou por aí! Só vou por onde
    Me levam meus próprios passos...

     José Régio


Já deu o que tinha a dar,
dizem alguns, por favor,
o tempo está a esgotar-se,
venha de novo o rigor,

venha quem ouse tomar
sem pudor nem contrição
medidas para salvar
a crença na expiação.
 
(Se deu o que tinha a dar,
olhando os que nada deram,
mas tiraram sem parar
sem cuidar dos que sofreram),

entre quem deu, mesmo pouco,
e quem tirou quase tudo,
só mesmo se fosse louco
votaria num testudo

e arrogante unhas-de-fome
com redobrados intuitos
(não o chamo pelo nome
pois o diabo tem muitos).

© Domingos da Mota

12.7.17

A vida de cada um

A vida de cada um
tem duas eras:
antes
e depois
da morte da Mãe

Teresa Rita Lopes

CICATRIZ, Editorial Presença, Lisboa, 1996

3.7.17

MIOPIA

São a janela para a alma, tu disseste, esses olhos;
e que dizes agora, quando a luz os esculpe,

células se dispersam, e a miopia parece sonho,
cortina, sombra de sombra, velo que a luz

fez violentar, lembrado apenas?

Eu atravesso a estrada sem óculos;
da ciência, a sua crença recuperada.

Tu acenas, nitidamente.

Luís Quintais

 A NOITE IMÓVEL, Assírio & Alvim, Março de 2017

29.6.17

Vinagre e azeite

A solidão pelas razões erradas avinagra a alma,
a solidão pelas razões certas lubrifica-a.

Que frágeis que somos, entre os raros momentos bons.

Indo e vindo incompletos,
intrigados com o destino,

como o relevo inacabado
de um burro caído, por cima de uma porta de igreja na Finlândia.


Vineger and oil

Wrong solitude vinegars the soul,
right solitude oils it.

How fragile we are, between the few good moments.

Coming and going unfinished,
puzzled by fate,

like the half-carved relief
of a fallen donkey, above a church door in Finland.

Jane Hirshfield


a mulher do casaco vermelho, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Colecção Poetas da Eufeme, Edições de Sérgio Ninguém (Eufeme), Julho de 2017



28.6.17

da flatulência

o peido feito ameaça,
o peido que não se deu,
o peido como chalaça,
um motejo, um ar de graça,
agastou, mas não fedeu.

envolto pela canção,
o peido apenas foi
um peido proclamação,
um peido com ovação;
um peido assim como sói

dizer-se do peido mestre?
não soltou ventosidade,
não foi um traque pedestre,
nem foi um peido equestre,
foi um peido de vaidade.

mas se houve quem pegou
no peido que não fedeu
e contra o peido clamou,
praguejou, se abespinhou
e fez um grande escarcéu,

que faria se o cheirasse,
se fosse um peido real,
um peido que tresandasse
e o seu pivete chegasse
para empestar Portugal.


© Domingos da Mota

22.6.17

CENTRAL DA PRAÇA DAS FLORES

Falava de incêndios e de lugares
perdidos, dessas trovoadas
que só acontecem na infância
e nos perseguem depois
uma vida inteira. Estamos
em Julho, nunca fez tanto calor.

Não, corrige Benilde,
"Estamos num velório,
andam aí as moscas, a dançar".
Nesta taberna, volto a perceber,
o poeta fica por detrás do balcão
e oferece-me num largo sorriso
cansadas, certeiras palavras:

"Sou um ser vivo e humano.
Até os vermes são vivos".
-- Que lhes aproveite, Dona
Benilde, a nossa morte,
estas tardes que prefiro a tudo

e a sombra, o manso prodígio da sombra.

Manuel de Freitas

A FLOR DOS TERRAMOTOS, Averno, Lisboa, 2005

12.6.17

indirecto livre

um romance é que era!...
dizem-me olhando de lado
os poemas 
longos
magros
enguias pensantes
agarradas ao papel
do centro de reabilitação

um romance é que era
com acção tempo
uma casa inteira
da raiz quadrada 
ao tecto
corredores a dar
para personagens
ténues
não totalmente
apatetadas
(sepultemos realismo
experimentalismo
e deus nos livre
do pós-colonialismo)

um romance é que faz
virar as cabeças na rua
calça mesas
duplica escaparates
expande a crítica
constipada
no seu casulo refinado

agora a conveniente
pausa descritiva
logo seguida
de autoconsciência
referencial
à guitarra e à viola

um romance é que era!...
sobrancelha arqueada
entre a cobiça e a paráfrase

Rosa Oliveira

tardio, Edições Tinta-da-china, Lda., Março de 2017

1.6.17

LUGAR EM BRANCO

Eu posso abrir aqui uma simples cratera.
Basta soprar o ar, estender braços e pernas,
dizer que sim ao corpo
e não enlouquecer.

É um lugar em branco, afundado no mundo.
A luz que o ilumina ele próprio
há-de gerá-la.
Por mais negra que seja será dele.

Então a vida vibra.
Os animais virão com músculos e raízes.
O reino vegetal trará as suas crias.
E a mão dura do sol será um bago de uva.

Uma simples cratera,
um poiso para os deuses, um riso sem paredes,
branquíssimo lugar,
uma pedra, um pão, uma só palavra.

Armando Silva Carvalho

A SOMBRA DO MAR, Assírio & Alvim, Julho de 2015

31.5.17

Perfeitamente domesticada,

Perfeitamente domesticada,
aparentando todo um rebanho de boas intenções,
atacava pela calada.

Desta vez, foi em pleno palco,
à frente de toda a gente.

Unhas e peles, braços em volta.
O bico dos abutres
a rasgar o dia em dois.

Ninguém gritou,
mas houve sangue.
Não me lembro se fui César,
se fui Bruto.

Golgona Anghel

NADAR NA PISCINA DOS PEQUENOS, Assírio & Alvim, Porto Editora, maio de 2017

26.5.17

Quantos dedos?

    Ao passado  --  para quê -- não lhe peço contas,
     faltam-lhe muitos dedos para as fazer todas.

     Jesús Jiménez  Domínguez


Quantas mãos e quantos dedos
teria de convocar
para contar os erros
sem máquina de calcular?
E entre os dedos mais ávidos
de saber o número certo
afogueados ou pálidos
com o saldo a descoberto
quanto tempo duraria
a sua tarefa ingrata
agravada dia a dia
pelos erros 
à socapa?


© Domingos da Mota

20.5.17

ÚLTIMO OLHAR PARA A ILHA KIRRIN

Viver consiste em ir perdendo coisas:
o leme do ar nos cabelos, os amores,
as lembranças, os remos dos dias felizes.
Ao dizer-lhes adeus com a mão
deixamos no ar a casca da despedida,
vemos passar as bicicletas sem ninguém
a caminho da ferrugem, a arder sem som.
Outros invernos cegaram as lanternas,
apagaram os binóculos e ficamos mais longe.
A cerveja de gengibre bebeu-a o sol do fim  do dia
e a empada de carne, tal como a infância
foi comida pelas moscas.

Jesús Jiménez Domínguez

ensinar o eco a falar, tradução de Maria Sousa, edição do lado esquerdo, exemplar 15/100, Coimbra / Fundão, Abril de 2017

17.5.17

Má para a poesia

A meia idade é terrível para a poesia,
Sobretudo para um surrealista.
Perder a vista é perder palavras.

Que correu mal? Não sabe.
A luz matinal ainda cai nas folhas.
A pessoa que ele era morreu há anos.

Agora, sentado numa poltrona,
Fixa os olhos na parede branca em frente,
Protegendo-os da luminosidade.


*


Bad for verse


Middle age is bad for verse,
Specially for a surrealist.
A loss of vision is a loss of words.

What went wrong? He doesn't know.
The morning light still falls on leaves.
The man he was died years ago.

Now, sitting in an easy-chair,
He stares at the blank wall in front,
Shading the eyes to cut the glare.

Arvind Krishna Mehrotra

antes de o tigre se abrigar, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edições Sérgio Ninguém (Eufeme), 2017

23.4.17

PARA UM LIVRO

O tempo que passei fechado sem
nenhum leitor, justificou ser
imolado pelas traças.

Inês Lourenço

COISAS QUE NUNCA, &etc, 2010

16.4.17

RITORNELOS

25.

O que se torna tempo
não podes somá-lo
é abissal e infinito
esperar que nasça o princípio
no interior do que só vês de fora.

Não, não podes somá-lo
entre os dedos idênticos
nem à verdade nem à carne,
o que se torna tempo
é este exacto instante
que se cumpriu
se perdeu.

Joana Emídio Marques

RITORNELOS seguido de CÂNTICOS DA FLORESTA e LITANIAS, Desenhos de Bárbara Fonte, abysmo, Lisboa, Fevereiro 2014

9.4.17

em língua de gato

Nada sei do amor é uma aragem
(outros o cantem) uma poeira
Nem sou esse o gato que pensa
mas o senhor sim desta passagem

entre ombro e ombreira
Veludo é o pelo me apascenta
Horas tantas que durmas lambo
as quentes sessenta e nove

de lado até caírem co'a calma
ratos que roem riso que move
relógio que pára o clic sem alma

da fotografia Então este tique
do verso rimado como um escroc
passa pra cá a perna e tu vais a reboque

                                                                           (Atenas, 2015)

Carlos Leite

DiVersos, Poesia e Tradução / n.º 25 - dezembro de 2016, Edições Sempre-Em-Pé,
Águas Santas

8.4.17

O MEL DE DEMÓCRITO

Dos átomos seguiste o movimento
dançando turbulento no vazio.
E vergaste-te à força do desejo
que engendra o corpo em outro divisível.
Mas nada mais fruíste do que o mel
na alma até à morte diluído.

José Augusto Seabra

Homenagem aos pré-socráticos (11 poemas), Edição Palavra em Mutação & autor, 2004

23.3.17

a mulher girava a mulher

a mulher girava a mulher
era a mó de um animal muito escuro

expandiam-se as redondezas do corpo
a mulher já não vinha no mapa mal cabia
na própria caligrafia.









mil águas depois
houve um homem.


Catarina Nunes de Almeida

MARSUPIAL, Mariposa Azual, Lisboa, Junho de 2014

15.3.17

AMENDOINS

Vivi o suficiente -- pensou.
Apenas uma única dúvida:
deveria dizer suficiente ou bastante?
Seja como for, chegou a um ponto
em que lhe era interiormente lícito dizer
que daquele ponto de vista em diante
a experiência entre os vivos
era mais ou menos redundante.
É claro que ao menor susto
haveria de agarrar-se à experiência redundante
como um macaco convictamente preênsil
por amendoins.
A vida era para ele amendoins.

Daniel Jonas

BISONTE, Assírio & Alvim, Porto, Abril de 2016

9.3.17

[Os velhos são manhosos]

Os velhos são manhosos.

Demoram-se a apanhar a fruta, sabem
que sabem esticar o braço antigo até aos primeiros figos,
que podem saber chegar ao fim da figueira.
Os velhos arrastam os pés em direcção à saída,
esgotam-se ao sol seguinte.
Cortam-se por vezes no vidro de emergência,
no buraco para o exterior.
Têm visões extraordinárias,
receitas específicas para o barroco do poema
e do mel.

Escrevo para os velhos.

Filipa Leal

VEM À QUINTA-FEIRA, Assírio & Alvim, Porto, 2016

6.3.17

Senhora da pós-verdade

Senhora da pós-verdade,
dizei-me, porque mentis
com a naturalidade
dum Pinóquio sem nariz
que se veja de verdade,
mas que cresce, oh se cresce,
porquanto a fatuidade
do seu umbigo parece
ser o exemplo perfeito
de como a venalidade
desdobrada num conceito
de aparente inocuidade,
não se esgota no filão
dos erros de percepção.


© Domingos da Mota


2.3.17

o terrorismo em 2014

numa ruela esconsa e íngreme
protegida da solar tirania
desta tarde
vi eu uma mulher inclinadíssima
alimentando em segredo
todos os pombos da cidade

António Albata


APÓCRIFA, PROJECTO LITERÁRIO EM CURSO, ANTOLOGIA, Prefácio de João Barrento, Reunião de Apócrifos Foragidos, 2016

1.3.17

O ANJO PERPLEXO

Nunca houve deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console,
nunca houve milagres ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem palavras mágicas, nem bálsamo eficaz
contra a dor que nunca cicatriza;
nem luz do outro lado das sombras
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo perplexo que suporta
como nós a mesma penosa vida.

Amalia Bautista

Jorge Sousa Braga, SOMBRAS BRANCAS, Setenta e sete poemas sobre anjos caídos de outras línguas, Língua Morta, Novembro de 2016




26.2.17

grandessíssimos

grandessíssimos banqueiros,
capacíssimos gestores,
sabidíssimos useiros
e vezeiros com penhores,
mais-valias, traficâncias,
intercâmbios e favores,
criativas manigâncias,
desvios para 
offshores,
enormíssimos negócios
(sob o manto do sigilo),
refinadíssimos ócios
adequados ao estilo
dos seus umbigos gigantes
como trombas de elefantes

© Domingos da Mota


25.2.17

IP 2

Oito óbitos por quilómetro
é muito insecto esborrachado
no pára-brisas.

São muitas vidas.
É muita abelha, muita borboleta,
muito mosquito.

Mas tu não és menos chegado ao finito
e o mais certo é que andes distraído
de que há um vidro

entre ti e o horizonte.

Rui Lage

Estrada Nacional, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, agosto de 2016

20.2.17

AMOR FORTUITO

Seduziu. E levou
naquele rubro olhar
tudo o que neste coube
sem ter sido gozado.

Que súbita presença
de casual encontro
com gestos de silêncio
e quietude de assomo.

E depois? Um tumulto,
nada mais assumido:
o tremor esvaído
que não teve percurso.

António Salvado

Essa Estória, Portugália Editora, Junho de 2008

15.2.17

À espera do grande dia

   Grande vida que tudo dás e tiras
Nem sequer a recordação permanecerá nos nossos ossos
Nem sequer a música do violino de Mendelssohn.


En Espera del Gran Día


   Gran vida que das y todo quitas
ni siquiera el recuerdo quederá en nuestros huesos
ni siquiera la música del violín de Mendelssohn.

Haroldo Alvarado Tenorio

[Tradução de João Rasteiro]

Di Versos, Poesia e tradução, N.º 24, Junho de 2016, Vinte anos: 1996-2016, Edições Sempre-em-Pé