29.12.16

[O verdadeiro poema]

O verdadeiro poema
não se pode ler
É um tiro no escuro
inaudito e cego

Ana Hatherly

FIBRILAÇÕES, Quimera Editores, 2005

26.12.16

IA NO BATALHA

      [sessões matinalmente dominicais
promovidas pelo CineClube do Porto]


saías
p'la crueldade
maior

o Inverno ferrando-te
nos olhos
uma luz metálica
por mera opção cromática
fixavas
as pombas

Ana Paula Inácio

ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno | 2016

23.12.16

Dezembro

Era Dezembro. O natal esperado
(não havia então ecografia),
poderia ser de um rapaz
ou de uma rapariga

(por meninos e meninas eram 
tratadas as crianças que nasciam
em berços de ouro).
E nasceu um rapaz. Gritou,

chorou, foi parido numa casa
humílima, que não era um presépio,
mas ouvia-se o cantar dos galos,
o ladrar dos cães, o mugir

das vacas nos currais.
Era Dezembro, mês propício
a partos difíceis,
naturais.

© Domingos da Mota

22.12.16

Quarto soneto de Natal

Pudesse do Natal dizer que é mais
que o corre-corre, que a lufa-lufa,
que a passada célere demais,
que a mole humana que se adensa e arrufa
e satura nos amplos corredores,
nas ruas e nas lojas, nos mercados
(valendo-se da casa de penhores,
como outrora do livro de fiados);
pudesse do Natal dizer que é muito,
muito mais que o bulício que se sente
atraído pelo larvar intuito
de febre consumista, futilmente,
que faz da pretensão de ter e haver
o santo-e-senha contra o próprio ser.


© Domingos da Mota


19.12.16

ENTREVISTA

diz-lhe que estás ocupado
a entrevistar-te a ti mesmo
mesmo porque se não
o pões desde já porta 
fora tás quilhado vai
espiolhar-te apalpar-te
meter-te o dedo no cu
querer saber a quantas
quais mulheres ofereceste
teu recortado coração (pelo picotado)
em quantos quais sonetos meteste
o catorze e quantas quecas
te saíram pela ejaculatra
e ainda que livros levarias
para uma ilha deserta
se lá tivesses de empinar
o talo e fazê-lo florir sem a ajuda de ninguém
sequer de sexta-feira
apenas com os cinco dedos
que deus te deu para isso mesmo
mesmo porque tens de o pôr
já porta fora

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2007

11.12.16

VARIAÇÕES DO BRANCO

Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.

Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata -- uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas  de uma neve --
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá

Manuel Gusmão

migrações do fogo, Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2004

10.12.16

ESFINGE

Olha mais uma vez     Traça de cor
o mapa desse rosto   as suas linhas tortas
tatuadas no vento     À tua espera
o seu meio-sorriso iluminando
corações como o teu
esses olhos translúcidos    a boca
que também tu beijaste e que hoje ainda
floresce no teu sangue    É  outro o mesmo
rosto
refém do tempo e no entanto igual
ao da primeira noite    ao da primeira
esfinge    O seu enigma
está cada vez mais perto    cada vez
mais longe


Fernando Pinto do Amaral

Manual de Cardiologia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2016

8.12.16

PEDRAS

Morar no tempo, mesmo
soterradas, coexistir no ofício durável da
neutralidade: dólmen menir pirâmide ameia
agulha gótica ou soleira
humilde, espelho duradouro
de poderes e impudores, brasão
seixo alvo fonte ou pedra de
arremesso, de jogar, de roçar à espera de
fertilidade, de esmigalhar, urinar,
sepultar. Vértebra
do mundo.

Inês Lourenço

O JOGO DAS COMPARAÇÕES, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Outubro de 2016

4.12.16

THEREZA

Sem apelo
               no vórtice do
dia no
abandono do chão na
lâmina da
luz feroz


             fora da vida


desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira

Ferreira Gullar

Obra Poética, Quasi Edições, Outubro 2003

3.12.16

NOITE

Do chão onde ontem enterrei
a noite irrompe como um garfo,
noite de hoje que eu não conheço
e todavia já 
noite velha que sei de cor.

Como um gesto premeditado,
nasce assim devagar,
tão nacional e tão leve,
tão primaveril pelas esquinas,
tão cheia de gatos nos telhados,
tão sem sono por ela adiante,
pequena noite habitual e casta
ligada ao dia por minúsculos grãos de café,
cores, vidros e frágeis cordões de fumo,
mas no entanto e sempre
tão principalmente noite.

José Manuel Simões

SOBRAS COMPLETAS, Prefácios de Helder Macedo e José de Sá Caetano, abysmo, Lisboa, Outubro 2016

1.12.16

[Um homem duplo cego]

Um homem duplo cego
aposta o limite. Um homem que se preze
presume uns degraus abaixo
do limiar de pobreza. Um homem
a ver gente vencida pelo silêncio,
a morrer aos bocados.
Um homem à beira
do fim.

Rui Baião

LADRADOR, Averno / 2012