30.8.15

[Na minha horta]

Na minha horta
colhendo fruta
sinto-me um ladrão

Yosa Buson

PRIMEIRO AMOR e outros poemas, Selecção e versões de Manuel Silva-Terra, Editora Licorne, outubro de 2013

21.8.15

A TRAIÇÃO

quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

19.8.15

CANÇÃO DA MORTE PEQUENA

Prado mortal de luas,
sangue debaixo da terra.
Prado de sangue velho.

Luz de ontem, luz de amanhã.
Céu mortal de relva.
Luz e noite de areia.

Encontrei-me com a morte.
Prado mortal de terra.
Uma morte pequena.

Há um cão sobre o telhado.
Só uma das minhas mãos
atravessava sem fim
montanhas de flores secas.

Catedral de cinza apenas.
Luz e noite de areia.
Uma morte pequena.

A morte e eu, um homem.
Um homem sòzinho, e ela,
uma morte pequena.

Prado mortal de lua.
Trémula a neve geme
atrás de qualquer porta.

Um homem, e quê? Já disse.
Um homem sòzinho e ela.
Prado, amor, luz e areia.

Federico Garcia Lorca


TRINTA E SEIS POEMAS E UMA ALELUIA ERÓTICA, Tradução de Eugénio de Andrade, Editorial Inova Limitada, Porto, Janeiro de 1970

14.8.15

Peste grisalha

Falemos de peste, 
da peste grisalha,
se não te esqueceste
do homem de palha
que useiro e vezeiro
em ser desalmado
saiu a terreiro
e ofendeu o estado
que ora carregas
em cima dos ombros,
depois de refregas,
assombros, disputas,
caminhos, percursos,
canseiras, labutas.

E lê o discurso 
sobre o filho-da-puta,
se o apoiaste,
lhe deste o teu voto,
julgando que o traste
não era um garoto,
isto é, seria
alguém confiável
e não, quem diria,
um ser detestável.

Não esqueças a peste,
a peste grisalha,
de quanto perdeste,
mesmo que não valha
a pena a canseira 
de fazer as contas,
mas de tal maneira
que quando repontas 
ao tom do insulto,
te lembres do agravo,
por muito que o vulto
não valha um centavo.

© Domingos da Mota

(Versos 2 e 26, citam uma expressão lida e ouvida através da comunicação social; 
versos 15 e 16, citam o título de um livro de Alberto Pimenta). 


12.8.15

COMUNICADO

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Coimbra, 18 de Abril de 1961.

Miguel Torga

Antologia Poética, 4.ª Edição Aumentada, Coimbra, Execução Gráfica, G.C. - Gráfica de Coimbra, Lda., Abril, 1994

9.8.15

radiograma

Alegre   triste   meigo   feroz   bêbado
lúcido
no meio do mar


Claro   obscuro   novo   velhíssimo   obsceno
puro
no meio do mar


Nado-morto às quatro   morto a nado às cinco
encontrado perdido
no meio do mar
no meio do mar

Mário Cesariny

PENA CAPITAL, Assírio & Alvim, Lisboa, Março, 1999




7.8.15

SEM CABEÇA

Até mesmo a manhã custa a perceber.
É como se alguém me decepasse a cabeça a meio da noite
e as horas se enganassem à volta do meu pescoço.

É fácil retratar uma degolação poética
em tempos de barbárie
tecnológica.

Afinal acordei no meio de gente ainda com cabeça
e eu sou aquele avô que os media
sempre ensinam.

Desgraçados dos tais
vestidos de amarelo para melhor serem vistos
com a faca viva encostada à garganta.

Comecei com a manhã imprecisa
meio cego a procurar um verso meu no meio da bruma
com a delicada nervosa faca de papel.

O mundo é um globo de gente ajoelhada,
de cabeças suspensas. E eu ao sair, só, do sono,
decapito o poema.

Armando Silva Carvalho

A Sombra do Mar, Assírio & Alvim, Julho de 2015

5.8.15

[Um ritmo perdido...]

Um ritmo perdido...

Se uma pausa não é fim
E silêncio não é ausência,
Se um ramo partido não mata uma árvore,
Um amor que é perdido, será acabado?

Um ouvido que escuta,
Uma alma que espera...
- Uma onda desfeita
É ou já não era?

Ana Hatherly

Um ritmo perdido, 1958

M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, ANTOLOGIA DA POESIA PORTUGUESA, 1940-1977 VOL.II, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979

4.8.15

IN MEMORIAM

     à minha Mãe


Desaba o sol, o silêncio,
a dor no coração da terra
comovida; na levada

do tempo, no rigor da noite,
para sempre, desmedida.
Desaba a luz, o sentido - a vida.

© Domingos da Mota

Agosto de 2003

Pequeno tratado das sombrasBusílis, 2018