13.12.22

QUANDO

Quando os teus olhos mostram dor
sinto que algo dentro de mim
se vai quebrar
Quando o teu coração transborda de tristeza
sou atirada para o gélido reino do medo
E se a tua figura começa a fluir para mim
logo me estilhaço
e desvaneço


2003

Nadia Anjuman

FLOR DE FUMO e outros poemas (obra completa), tradução (do inglês): Regina Guimarães, Editora Exclamação, Lda., Porto, Novembro de 2022:91

16.11.22

Receita

Tome-se um poeta não cansado,
Uma nuvem de sonho e uma flor,
Três gotas de tristeza, um tom dourado,
Uma veia sangrando de pavor.
Quando a massa já ferve e se retorce
Deita-se a luz dum corpo de mulher,
Duma pitada de morte se reforce,
Que um amor de poeta assim requer.


José Saramago


Os Poemas Possíveis (4.ª edição), Editorial Caminho, Outubro de 1998

13.11.22

Canção do ver

9.


E agora
que fazer
com esta manhã desabrochada a pássaros?


Manoel de Barros

POEMAS RUPESTRES, Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2004

7.11.22

A FURTIVA ALEGRIA

Acumulo
retratos desfocados
viagens dispersas danos
moratórias

Mas também a ciência animal
de lamber as feridas, a furtiva alegria
a caminho da noite para matar
a sede na corrente.


Inês Lourenço

COISAS QUE NUNCA, & etc Julho de 2010

6.11.22

HOMERO

Escrever um poema como um boi lavra o campo
Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada supere o homem do vivido


Sophia de Mello Breyner Andresen


O BÚZIO DE CÓS E OUTROS POEMAS, Editorial Caminho, SA, Lisboa, Outubro de 1997

31.10.22

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Carlos Drummond de Andrade

Antologia Poética, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2015

28.10.22

Com a vara calculei a distância entre os dias

Com a vara calculei a distância entre os dias
A vara, pensei, vai florir
Posso incliná-la para uma criança a colher


Daniel Faria


POESIA [Das inúmeras águas], Assírio & Alvim, Setembro de 2021:291

26.9.22

DO BOLETIM METEOROLÓGICO

A Europa, coberta de isóbaras
ou um labirinto; de nimbos, cirros
ou um branco panal de mortos;
de setas, ventos, ou flechas
apontadas ao coração tão débil.


Fiama Hasse Pais Brandão


As Fábulas, Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Abril 2002

12.9.22

A VINHA

as pedras da ilha do pico
que formam muros
em volta da vinha cabisbaixa
trazem o fogo escondido
no apertado coração
são negras como certos frutos
muito maduros
debruçadas no azul azul do mar

no meio do vinhedo
uma pequena cancela vermelha
ilumina bruscamente
a negritude geométrica
é o sorriso das pedras cativas
com o fogo escondido
no apertado coração


Francisco Duarte Mangas

in CINCO POEMAS AÇORIANOS, NERVO/15 colectivo de poesia (setembro-dezembro 2022), Editora: Maria F. Roldão

5.9.22

THE BLACK RIDERS / OS CAVALEIROS NEGROS

Cavaleiros negros vieram do mar.
Brandiram com clamor lança e escudo:
Bateram num clangor casco e talão;
Ferozes brados, um ondear de crinas
No vento se espalhando:
Era o cavalgar do crime.


Stephen Crane

The Black Riders and Other Lines, 1895
O OUTONO DE OITOCENTOS, ANTOLOGIA DE POESIA TRADUZIDA POR MARGARIDA VALE DO GATO, FLOP, ASSOCIAÇÃO CULTURAL, Agosto de 2022

4.9.22

RUBATO

Se pareces desatenta
é porque em tudo habitas

Círculo simples das coisas que te pertencem
o ar que deixas deslocar-se sensível
e assim adormece

Poderíamos falar da qualidade musical
da luz que iluminas, do modo rigoroso
como esqueces lençóis
que vemos viverem contigo

Alguém escolherá uma palavra
por exemplo, rubato, chegamos
um pouco tarde ou algo cedo
e esse será apenas
um nome difícil para a vida


José Manuel Teixeira da Silva


O Lugar que Muda o Lugar, Língua Morta, Setembro de 2013

24.8.22

enumeração

há palavras da mesma sorte do osso, néons brancos
ressonantes,
inócuos fragmentos d'orvalho, cães-guia do medo
abocanhando de a a z, o brilho rendoso do silêncio:

anjo baraço contagem deus epitáfio foice gárgula
hospício intervalo jusante lâmina morte nome óbolo
patíbulo querosene ruína salmo talhão uivo vazio
xisto zumbido_____________________________


Luís Filipe Pereira

elogio da espera [61+ 43 poemas], Poética Grupo Editorial, Lisboa, julho de 2022

21.8.22

AZUL AR

azul mais azul que todo o azul do mar
azul mais azul que todo o azul do mundo
que azul tão azul tinha
ali o azul do céu
para onde azulou o passarinho meu


Alexandre O'Neill

ANOS 70 poemas dispersos
, Assírio & Alvim, Outubro de 2005




19.8.22

INFERNO

2


Que dizer deste tempo
em que falo sozinho,
rodeado de mar que é só ausência
e espelho do céu mudo?
Luz? Que luz? Que sol? Que cor
inunda este silêncio de hospitais
e ambulâncias velozes?
A cor da guerra,
da cidade vazia,
a cor do medo,
a cor em chamas
daqueles que se atiram para diante
e tentam devolver a gente
às suas casas brancas?


Nuno Dempster

LIMBO, INFERNO E PARAÍSO 
TRÊS ESTADOS APÓCRIFOS, 
Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2022

13.8.22

ESCALEIRAS DE GRANITO

Ao longo de incontáveis gerações.
tamancos insistentes foram desgastando
alguns dos degraus de menor dureza.

Mas não eliminaram a sábia proporção
e o ritmo do conjunto -
que continuam lá, desafiando
tamancos de outras tantas gerações.

É assim o granito: perdurar
está-lhe na massa do sangue.


A. M. Pires Cabral

Caderneta de Lembranças. Edições Tinta-da-China, Lda., Lisboa, Novembro de 2021

10.8.22

SEM NADA DE MEU

Dei-me inteiro. Os outros 
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


Rui Knopfli


Uso Particular (poemas escolhidos de Rui Knopfli)
, edição do lado esquerdo, Coimbra / Fundáo,  Julho de 2017

RUMOR DE ÁGUA

Rumor de água,
na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão. 

Rumor de água
no tempo e no coração.

Rumor de nada.


Carlos de Oliveira


TRABALHO POÉTICO, Livraria Sá da Costa Editora, 3.ª edição, Lisboa, 1998

9.8.22

migração

Ah
não me venham dizer
oh
não quero saber
ah
quem me dera esquecer

Só e incerto é que o poema é aberto
e a Palavra flui inesgotável!


Mário Cesariny

CESARINY  UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Março 2007

7.8.22

'O Som que os Versos Fazem ao Abrir'

                    a Ana Luísa Amaral


Nunca falei
Com ela:
Vi-a, li-a,
Ouvi-lhe apenas

O Som que os
Versos
Fazem ao

Abrir os poemas.



Domingos da Mota

6.8.22

ELECTRICIDADE

Mal fechada a torneira
e no silêncio
o ruído invasor: uma gota
pequena, regular

Como um prego mental
dilacerando: agudo o som
da água. Em tortura a memória,
o espaçamento de aguardar
outra gota

outro chicote azul
na tempestade


Ana Luísa Amaral

E TODAVIA
, Assírio & Alvim, Abril de 2015

4.8.22

HERACLITO

'Os estorninhos nunca voam duas vezes
no mesmo céu', poderia ter dito Heraclito,
se o ouvíssemos


Amadeu Baptista

Escrito na Grécia, Edições Afrontamento, Porto, Junho de 2022

31.7.22

Teleologia

Tudo por dizer sempre
Nunca chegaremos ao cerne das medusas
à nervura das pedras
o esforço suga o coração
embranquece a luz impalpável das folhas da parreira
no ardor de Agosto
um gato adormece sobre o peito
a esta hora melancólica - a sombra da catedral
no interior da Terra algo se prepara sempre
surgirá o outro dia e os presságios
são talvez de treva de névoa
de musgo ou salitre
o silêncio canta no ouvido dos bichos
(os bichos ardem nas locas do crime)
nunca chegaremos ao local das brisas
mas é na Terra o único envolvimento
da açucena


27/8/91
(à memória de Ruy Belo)

Levi Condinho

Colheita serôdia -
inéditos e dispersos, Edição Húmus, 2020, Vila Nova de Famalicão

21.7.22

génios

Quantos génios haverá hoje em Portugal

Todos sabemos: legiões
Só no mundo literário por exemplo

Basta abrir o JL
Cada 15 dias 15
autores ou obras geniais

Portugal vai precisar cada vez mais
de importar pessoas
normais.


Arnaldo Saraiva

TÃO CEDO PASSA TUDO QUANTO PASSA!   12 poetas de agora, ilustrações Manuel Cargaleiro coordenação Arnaldo Saraiva, Jornal do Fundão Editora, Junho de 2022:15

6.7.22

Esgotadíssima

A doutora está esgotada,
com burnout, que é mais fino.
Quer mudar para a privada
e dar a volta ao destino.


© Domingos da Mota

2.7.22

Esboço para um retrato

Dedicado à Mara


É tão leve a tua voz,
oh mulher
sustentada a fogo
e olhos esvoaçantes

- é tão leve
a tua voz,
que o próprio ar se suspende
como sombras de lua
na palma encantada das mãos!

in Noite Vertical, 2017
Zetho Cunha Gonçalves

DiVersos, Poesia  e Tradução | n.º 33 outono-inverno de 2021-2022, Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas 

25.6.22

verão

gosto do cheiro  a sargaço da 
palavra; outras vezes é a sua
sombra que procuro.


Francisco Duarte Mangas


devocionário, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2022

17.6.22

PLÚMBEO, O DIA...

Plúmbeo, o dia cruza-se com as orquídeas
nos teus olhos de cinza e de luar.

João Rui de Sousa


Obstinação do Corpo, Edição O Mirante . Jornal da Região do Ribatejo, Santarém, Outubro de 1996

15.6.22

PRATOS LIMPOS

Não pertenço à prosa
nem tampouco ao verso.
É apenas da rosa
que sou humilde servo.


Sérgio Almeida


Revolver, Guerra e Paz, Editores, Lda., Maio de 2022

13.6.22

[FUTUROU FERNANDO PESSOA]

Futurou Fernando Pessoa
em Durban ou em Lisboa
que os ossos dos seus heterónimos
seriam depositados nos Jerónimos?

© Domingos da Mota


Eufeme n.º23 Magazine de Poesia (Abril/Junho 2022)

10.6.22

[TANTA GUERRA, TANTO ENGANO...]

No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


Luís de Camões

OS LUSÍADAS [I, 106]

4.6.22

TEORIA DO AMOR, 2

Ama a
imperfeição. Ama
a embriaguez. Só
elas haverão
de trazer medida
para a tua
pequena humanidade
face ao tamanho
do mundo, que
não precisa
de ti.

Ama.


Bernardo Pinto de Almeida

A ESTRADA MENOS VIAJADA, SR TESTE EDIÇÕES, Janeiro 2022:65

* no livro lê-se 'embriaguês'.

29.5.22

Ariadne

Estender o fio do horizonte,
lavar a luz e secá-la ao sol.
Esperar depois que Teseu chegue
para descobrir que por mim
não se alegrou. Saber desta maneira
como é a luz escura e que o último
labirinto é o mais cruel.


Amadeu Baptista

DiVersos, Poesia e Tradução | n.º 33 outono-inverno de 2021-22 (de uma sequência de poemas do livro no prelo Escrito na Grécia)

23.5.22

OS LIMITES DA ORNITOLOGIA

Quando Charles Simic disse de uma pedra
que pode transformar-se em pássaro
os deuses riram-se. E também
os eruditos, os inventores de leis,
os senhores da guerra. Mas da mão para o alto
a pedra voou e consta,
desde então,
que ninguém veio pedir contas às nuvens.
Extremamente cuidadosos
os cristais brilham como lâmpadas
em permanente estado de alerta.


Luís Filipe Parrado

Roma não Perdoa a Traidores, Língua Morta, Março de 2021

21.5.22

Corinto

No baixo-relevo do acrotério
de Corinto pode ver-se
o rapaz que apregoa uvas
há mais de dois mil anos.


Amadeu Baptista

Acanto, Revista de Poesia - número 5, Edição Hora de Ler, Unipessoal, Lda., Leiria, Abril de 2022

18.5.22

Michel Pauvros sustentou em Bruxelas

Michel Pauvros sustentou em Bruxelas,
com brilhantismo e a argúcia
a que nos habituou, não haver qualquer diferença
entre um erro de ortografia e uma catástrofe nuclear.

ANÓNIMO
       (?)

poetas sem qualidades, Averno | 2002, [Bardamerda - Poemas Citacionistas Contemporâneos, Lisboa, & etc, 1999]

10.5.22

ESTE ANO

Este ano cresceu de joelhos
a noite conservou as quatro luas
as crianças têm seus cabelos
seus gritos de paz intransmissíveis


Luiza Neto Jorge

poesia 1960-1989, 2.ª edição, organização e prefácio Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, Setembro 2001

30.4.22

A SITUAÇÃO FAZ-SE DELICADA

Basta olhar para o sol
Através de um vidro fumado
Para ver que a coisa vai mal;
Ou vocês acham que vai bem?

Eu proponho voltar
Aos carros puxados a cavalo
Ao avião a vapor
Aos televisores de pedra.

Os antigos tinham razão:
É preciso voltar a cozinhar a lenha.


Nicanor Parra

ACHO QUE VOU MORRER DE POESIA, Selecção, tradução, prólogo e notas de Miguel Filipe Mochila, Língua Morta, Outubro de 2019

26.4.22

PHOKYLIDES

Phokylides diz: são velhacos
os de Leros. Não é este
ou aquele, são todos.
Excepto Prokles. E Prokles?
É de Leros.


Phokylides

Poemas da Antologia Grega, versões de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2018

20.4.22

SOB UM QUADRO

Onda de trigo por bandos de corvos invadida.
Azul de que céu? Do de baixo? De cima?
Flecha tardia, desde a alma despedida.
Zumbido mais forte. Ardor mais próximo. Dois mundos.

Paul Celan

Não Sabemos mesmo O Que Importa - Cem Poemas
, Tradução e Posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2014

18.4.22

Breviário da incerteza

A dúvida, senhor,
dai-nos a dúvida, para podermos
questionar e ver melhor.

*

Perante as evidências plantadas,
um grão de cepticismo
nos dai hoje.

*

Ante o rolo compressor
do pensamento unidimensional, que o ponto
de interrogação nos acompanhe.

*

Perante o dogma,
pai e mãe do fanatismo, que a incerteza
rasgue os ares como um relâmpago.

*

Da censura
livrai-nos ora e sempre
e dos seus malefícios culturais.

© Domingos da Mota

12.4.22

ESPERANDO POR MATHIAS FERGUSON MORTO COM O SEU EXÉRCITO

Aquele poema, em que acabei por dizer
que o inverno traria notícias do norte, não resolveu
as minhas dúvidas. Nem a sua conclusão, nem o meu estado
de espírito, me puderam
esclarecer sobre a verdadeira natureza
da profecia; e se bem que hoje, passados muitos dias sobre o fim
do outono, algo me possa dizer que mahias ferguson,
o trombeteiro, tocou a madrugada, não ouço o tropel dos cavalos
nem reconheço, nas cores indecisas do horizonte, as cores
vitoriosas do regimento. O que terá sucedido, entretanto? Que planície
dá guarida aos corpos
dos soldados mortos? Quem, na solidão, terá congeminado
a desgraça para um país, e a dúvida obsessiva
para um poeta, a sul?


Nuno Júdice


50 Anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2022

9.4.22

[Sabedoria de insecto]

Sabedoria de insecto:

chegará o dia em que a morte será
o mais banal de todos os mistérios.


Ricardo Gil Soeiro

Pirilampos - política das sobrevivências, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2022

7.4.22

ICEBERG

Espécie em vias de extinção.


João Pedro Mésseder


Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021


2.4.22

O PREÇO DE UM SOLDADO

Em 1938, num artigo sobre outra coisa,
Ezra Pound, que entendia a poesia
como uma ciência hermética
e a economia como uma magia exacta,
o perturbado admirador de Mussolini,
o bricoleur de tradições e exotismos,
o visionário
que naufragou na maré caótica das suas visões,
escreveu, num rapto de lucidez e decência,
o seguinte:
                  «A guerra custa
25.000 dólares por cadáver.
                                         Quero saber
QUEM fica com esses 25.000 dólares.
Esta pergunta parece-me
de criminologia elementar».

Ezra Pound, o pró-fascista retórico,
nunca soube com certeza
quem ficava com esses milhares de dólares,
da mesma forma que não podemos saber
se os beneficiários desse dinheiro fúnebre, ontem e hoje,
conseguem afugentar do repertório dos seus sonhos
os cadáveres anónimos que levam na carteira,
como uma sequência recorrente de mortos sem porquê
que perguntam por quê, enfiados numa carteira.


Felipe Benítez Reyes

OS OSSOS DO MEU DUPLO, TRADUÇÕES DE POESIA, Poemas traduzidos por Diogo Vaz Pinto, Selecção e introdução de Luís Filipe Parrado, Língua Morta, Outubro de 2021

26.3.22

Desarmonia pré-estabelecida

Por cada um que pespega
a garrafa de cerveja na cabeça do tâmil,
um cirurgião nas urgências,
para coser o crânio.
E vice-versa.

Por cada perito de desminagem
pondo em risco a vida,
um negociante de armas.
E vice-versa.

Por cada violador, uma mulher
com a faca de cortar os bifes na mão,
por cada trabalhador da segurança social
um neo-nazi, e por cada um que ganha bem
um inspector de finanças, e para
cada monstro uma doce madonna, e vice-versa.

Ah, tanto que fazer
para cada um de nós:
nem se vê o fim.


Hans Magnus Enzensberger

66 POEMAS, Tradução, notas e posfácio: Alberto Pimenta, Edições Saguão, Outubro de 2019

22.3.22

AS ÚLTIMAS FOLHAS DO OUTONO

A contemplação do fumo, depois de apagar uma vela.

*

A vela chegou ao fim, mas, eu continuo a escrever, â luz
dos olhos do meu gato.

*

Dou, todos os dias, um passeio, para ficar cada vez mais
imóvel
- Do que é que eu tenho medo?
- De Deus, porque, se Ele quiser, pode não existir.

*

No jardim, onde vi p´la primeira vez as tuas mamas,
há uma fonte
com uma mulher esculpida em bronze,
que empunha, com as duas mãos, uma lâmpada apagada.
Quando vi p'la primeira vez as tuas mamas a lâmpada estava acesa.

*

A dois passos do descaminho
o milagre da caligrafia
uma fonte
um largo largo largo largo horizonte.

*

O distúrbio da beleza:
viver encarcerado com as linhas do teu rosto.


António Barahona

NERVO/13   colectivo de poesia   janeiro-abril 2022, Editora Maria F. Roldão

21.3.22

Como comer um dióspiro

Pegas numa faca bem afiada
e cortas o dióspiro em quatro partes
com a ponta da faca abres cada gomo
como se fosse uma pétala da flor de sol
a seguir comes a polpa com uma colher

Cuidado para não te queimares de prazer


Paulo Moreira Lopes


como comer um dióspiro, Edição Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Fevereiro de 2022

20.3.22

OFÍCIO

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira


Gastão Cruz

ESCARPAS, Assírio & Alvim, Fevereiro 2010

14.3.22

FASTO E NEFASTO

Aquele ali parado na manhã de outono
de noite fasta e nefasta deixada atrás das costas
pretende salvar os sonhos no lugar da vida.

No lugar da vida aquele ali parado
alimenta a noite na manhã de outono
e desafia a morte.

Na manhã de outono aquele ali perdido
deixou para trás das costas no lugar da vida
a salvação dos sonhos.

Perdido na manhã no outono da vida
aquele ali tão fasto a salvar os sonhos
alimenta só a nefasta morte.


Armando Silva Carvalho

A SOMBRA DO MAR
, Assírio & Alvim, Julho de 2015

12.3.22

[Afrontar com a mesma calma]

Afrontar com a mesma calma
a casa que se constrói
e o dilúvio que a arrasa?

Flor Campino


27 poemas, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2021

11.3.22

devocionário

húmus


quando é de restos de sol
silêncio e cascas
de tangerina: a poesia
estende raízes
navega
dá ramos e frutos.


Francisco Duarte Mangas

devocionário, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2022

10.3.22

[Um arrepio cruzou o corpo, decidiram envelhecer]

Um arrepio cruzou o corpo, decidiram envelhecer
textualmente, como existência mágica da vida.
Sopa e calamares. E a mesa? Assim, um moleiro
apaixonado se trancou na azenha, dizendo o povo,
empertigado, que o viu chorar de tanta beleza.

José Alves da Costa, Cabo apontador, recusou-se a
matar


Aurelino Costa

amónio, desenhos de Anxo Pastor, Edições Húmus, Fevereiro de 2022, Vila Nova de Famalicão

5.3.22

SILÊNCIOS

A morte sempre ao lado.
Escuto o seu dizer.
Só me oiço.


*


SILENCIOS


La muerte siempre al lado.
Escucho su decir.
Sólo me oigo.


Alejandra Pizarnik


Antologia Poética, Tradução edição em língua portuguesa: ocorreiodosnavios | estratégiascriativas, Porto

4.3.22

MANHÃ DE JUNHO

Talvez, talvez sejam os últimos
dias. Se for assim, são um esplendor.
Apesar dos aviões da Nato despejarem
bombas e bombas no Kosovo, a perfeição
mora neste buraco branco
onde o escarlate
da flor da buganvília sobe ao encontro
da luz fresca da manhã de junho.
A beleza (não há outra palavra
para dizê-lo), a beleza desta manhã
é terrível: persiste, domina -
apesar dos aviões, mesmo com
bombas a cair e crianças a morrer.


Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Edição Fundação Eugénio de Andrade, Setembro, 2001

20.2.22

DA PRIMAVERA

(imitado de Sículo)


Da primavera   uma constância incerta:
umas vezes   sorri   encantadora
serenamente o rosto juvenil,
outras vezes cobrindo só com névoas,
com chuvas e relâmpagos terríveis
a terra inteira   numa aterradora
confusão entre coisas, gentes, bichos.


António Salvado


ECOS DO TRAJECTO seguido de PASSO A PASSO, Edição Ricardo Neves Produção Lda. - A. 23 Edições, 2014

11.2.22

Pára de repente o rio

23.


Pára de repente o rio
na ponte do caçador

volta rio volta à fonte
vai chamar o meu amor

tem nas mãos sete navalhas
com sangue de cada cor

volta rio volta à fonte
vê se vês o meu amor

tem dois sacos nas ilhargas
leva ali prazer e dor

volta rio volta à fonte
traz contigo o meu amor

olha com corvos no olhos
os caminhos sem redor

volta rio volta à fonte
que secou no meu amor


Helder Macedo


RESTA AINDA A FACE, Escolha e posfácio de Paulo José Miranda, abysmo, Lisboa, novembro 2015

9.2.22

SUPOSTA NOTA DE DESPEDIDA DE GELI RAUBAL DIRIGIDA A SEU TIO ADOLF HITLER

NÃO estou descrente, tio, dos nossos jogos
de guerra, mas não me sei comportar
como um adversário aguerrido quando me apontam
uma arma ao coração para que obedeça
- para além dos limites, só eu hei-de saber
do alvoroço da minha submissão e a coragem
necessária para que a mim mesma possa conferir
o veredicto do desassossego. Assim, serei eu
a apontar a arma ao meu peito e a disparar,
a saber que o relatório do Instituto de Medicina
Legal confirmará o meu suicídio, embora só quisesse
escapar ao terror que me provocas.


Amadeu Baptista


UM POUCO ACIMA DA MISÉRIA
, Edicións Espiral Maior, S. L. - A Coruña - Galicia - 2014

8.2.22

Menino que vais na rua

          (Serenata cínica para o Bettencourt cantar:)

Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no céu e na lua
e aprende a pisar a terra.

Aprende a pisar o mundo.
Deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.

Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.

Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.

Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.

Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.

Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta prà lua
e mija de lá na terra.

José Gomes Ferreira

M. Alberta Menéres e E. M. de Mello e Castro, Antologia da Poesia Portuguesa, 1940-1977, 1.º Volume, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979

5.2.22

[Mais cedo ou mais tarde]

Mais cedo ou mais tarde
o silêncio virá
perguntar por ti.

Albano Martins

Com as Flores do Salgueiro, Edições Universidade Fernando Pessoa, Porto, 1995

1.2.22

SANTO E SENHA

Desengaçar a alegria
do chato amável mundo


                                      Lisboa
                                      VII-91

Fernando Assis Pacheco

Respiração Assistida, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2003

31.1.22

PERGUNTA OCIOSA

Os gregos ensinaram «paciência»
e «modera o apetite», os cristãos
acrescentaram «compadece-te e perdoa».
Sugestões orientadas para os dias
rigorosos da pobreza ou da velhice,
quando resta carrilar no conformismo
a empenada carruagem do possível.

Numa época, porém, em que velhos
nada contam e ninguém se penaliza
por viver a curto prazo, na corrida
milionária ao armamento do desejo
(pois o pleito do consolo não se trava
já na alma mas na quina dos sentidos),
a que podemos nós chamar «sabedoria»?


José Miguel Silva

Erros Individuais, Relógio D'Água Editores, Novembro de 2010

28.1.22

LAURENTINA DESAGRAVADA

termos fígado é termos moral
sermos importantes é bem bom
evitemos as rimas em al
cala-se a voz que turbada
já de si mesmo etc. ... bom!

estavam os suicidas todos à janela
a gabarem uma vista significativa
que vinha à cabeça da comitiva
que vinha no meio da comitiva
que vinha na cauda da comitiva
e o ainda mexerem era a única coisa bela
e o ainda mexerem era a única coisa viva
para bem dela.

O marido a fingir que não vê
boa perna e papeira flá
cida do souflé do souflé
e do amor dum pequinois.

e enganemo-nos a achar glorioso
o passado desfuturado
vamos arranjem um papão a falar grosso
já temos um menino medroso
e um cueiro branco mijado.

João Pedro Grabato Dias

Odes Didácticas - Poemas Escolhidos, Edições Tinta-da-china, Lda., Novembro de 2021

19.1.22

QUASE UM HAIKAI

Que terror te ergueu
pétala a pétala
para eu desfolhar,
ó manhã de oiro!


Eugénio de Andrade

POEMAS 1945-1965, Portugália Editora, Lisboa


8.1.22

SOBRE POLÍTICA

o poder
de guardares
as palavras
como pacientes grãos
de minúcia: de deixares
a flecha
regressar
envenenada
ao coração
de quem
a dispara


José Carlos Barros

Penélope Escreve a Ulisses
, Edições Caixa Alta, Sintra, 2021

2.1.22

DESVERSOS

2.


Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas - e não pára!

bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p. f. o microfone
ou então tirem o país da ficha


Lisboa
6-V-95


Fernando Assis Pacheco

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Novembro 2003

1.1.22

JULIUS POLYAENUS

A esperança rouba o tempo das nossas vidas.
A última madrugada surpreende-nos com tanto por
       fazer!


Julius Polyaenus


Poemas da Antologia Grega
, versões de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2018