28.1.23

IN MEMORIAM CELAN

Coração flagelado que a acolhe [à Rosa de Ninguém].
Sanguínea, calcinada, coibida.
Opaca, sustida pelo carniceiro, desorbitada pelo Crime,
cerceada.
Redenção extasiada <dos que reprimem>.
(Língua libélula a ver-se esquiva.)
Besta [nazi] que a sofreia.
Vestuário gutural, sufocado.
Cume de infâmia que sustém
O seu fim coarctado.

José Emílio-Nelson

NERVO/17 colectivo de poesia (janeiro-abril 2023), Editora: Maria F. Roldão

19.1.23

DESPEDIDA

Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.



Eugénio de Andrade

POEMAS 1945-1965, Portugália Editora, Outubro de 1968

16.1.23

A IMPOTÊNCIA

Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo
inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.


Gräsen i Thule,1958


Harry Martison

O DESTINO DA ÁRVORE É TRANSFORMAR-SE EM PAPEL, antologia de poesia sueca, versões de Amadeu Baptista, edição contracapa, Vila Meã, Abril de 2022:38

15.1.23

Uma pedrada no segredo

A Manuel de Castro - Lisboa 1973*


Uma pedrada no segredo
Um pontapé no silêncio
Uma facada no amor
Um murro no olho do poeta

Um delírio de copos no «Estibordo»
Uma joint ao canto da «Opinião»
Um beijo de louco nos lábios da louca
Uma cozinheira de cutelo na mão

Um poema volante nas mãos do Cinatti
Uma rosa pintada nos lábios da Eunice
Um canivete afiado pelo Cabeça de Vaca
Uma filha tua a arder de desejo

Um saco cheio de loucura nas mãos do Pacheco
Uma rutilante sombra acesa na noite escura
Um desenho do Délio escorrendo sangue
Uma vagabunda sentada nas escadinhas do Duque

Sonhando sonhando sonhando


João Carlos Raposo Nunes

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* A Ideia, nº. 73-74


Saímos em Bandos Disparando Brita, Prata, Fumos
, Antologia de João Carlos Raposo Nunes, Organização, edição e introdução de Nuno Miguel Neves, Maldoror, 2021:61






14.1.23

[De vida ou de suprema arte matemática]

De vida ou de suprema arte matemática
És amador
Contas plos dedos
Dedos incertos
Errando páginas
Onde sabes que todo o movimento é vão
Esperas apenas que o medo
Não te transforme em rato
Tens um olho no gato
E várias formas de contar
Que desta vez o cantar do galo
Anunciará um anjo pagão

A cidade amanhece o deserto é certo
O braço do rio parte donde o teu se descompõe

Ana Paula Inácio


QUARENTENA
"AO DESCONCERTO DO MUNDO"
Autores: Ana Paula Inácio, João Rasteiro, José Rui Teixeira, Rosa Alice Branco
Posfácio: Valter Hugo Mãe; Desenhos: Agostinho Santos, Editora Exclamação, Lda., Porto, Novembro de 2022:63

11.1.23

O LUGAR

Eles conversavam sobre a guerra
Sentados a uma mesa ainda por levantar.
Do outro lado da rua, a primeira janela
Da noite já estava iluminada.
Ele estava sentado, curvado, imóvel,
o velho medo acometendo-o...
Escureceu. Ela levantou-se para levar o prato -
Agora desagradavelmente branco - para a cozinha.
Lá fora nos campos, nos bosques
Um pássaro falava por provérbios,
Um Papa saía ao encontro de Átila,
A fossa estava pronta para o seu pelotão.

*

THE PLACE

They were talking about the war/The table still uncleared in front of them./
Across the way, the first window/Of the evening was already lit./
He sat, hunched over, quiet,/The old fear coming over him.../
It grew darker. She got up to take the plate -/ Now unpleasently white - to the kitchen./
Outside in the fields, in the woods/ A bird spoke in proverbs,/
A Pope went out to meet Attila,/ The ditch was ready for its squad.



Charles Simic


PREVISÃO DE TEMPO PARA UTOPIA E ARREDORES, selecção e tradução de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Abril 2002

8.1.23

50 GRAUS ABAIXO DE ZERO

Nas noites de janeiro
rangem os dentes das estrelas
ao morder
o pão do frio.

Nas noites de janeiro
navega a lua
como um ataúde
rumo ao seu gélido inferno azul.

Os bosques negros
estremecem.
Congelam as cortinas
da aurora boreal.

Nas noites de janeiro
resplandece
o punhal do frio
na mão da morte.

Palasin kottin, 1944

Arvo Turtiainen


O MUNDO ADORMECIDO ESPERA IMPACIENTE antologia de poesia finlandesa, versões de Amadeu Baptista, edição contracapa, Vila Meã, Julho de 2022

1.1.23

Um de Janeiro

Não me mostres nenhum norte
nem estradas para lá

A. M. Pires


Não me apontes directrizes,
azimutes, direcções;
o tempo, como as raízes,
não precisa de sermões,
de decretos e alvitres
e nem sequer de parábolas,
de conselhos e palpites ,
mnemónicas ou cábulas.
Não me indiques outro norte:
habituado a nortadas,
enfrentarei o desnorte
que transtorne as caminhadas,
se a fortuna, por acaso,
no decurso me der azo.


© Domingos da Mota