19.1.24

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.


Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Edição 1.ª, Setembro, 2001, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto

17.1.24

PARAÍSO E INFERNO

segundo a teoria
de todos os Santos
Padres, seja Tomás
seja Agostinho, seja
qual for, ganhar o
Paraíso obrigará a
perder tudo o mais,
inclusive raspadinhas...
ganhar o paraíso...
mas como é ele?

não tem nómadas,
só residentes fixos,
como os beatos e santos
e recém-canonizados,
impedidos de alugar
e pior mesmo subalugar,
porque assim é perfeito,
perfeito, para alguns
papas até, e com razão,
mais que perfeito,
ou seja, já foi, era,
não recebe mais, para
já ele acabou, ganhá-lo
é pois ganhar o que na
santa teoria existiu,
mas deu-se-lhe fim:
na prática, teve fim,
eramos tantos a dizer
in eo spero, acabou,
está cheio, mais nada,
acabou, foi, não há.

calma!
os matemáticos
ainda
não concluíram
todos os cálculos.

consegue-se?

do inferno
já conseguiram.


Alberto Pimenta

in
NERVO / 20 Janeiro a Abril de 2024, Editora: Maria F Roldão

9.1.24

Ode ao bolor

                  ad summam


Cheiram a mofo, a bafio,
os que de rosto sombrio
nos prometem o futuro.
Um futuro promissor?

Como se o cheiro a bolor
melhorasse o pão duro.
Fosse mole o pão doutrora,
(mais fresco que o pão d'agora)

e talvez muitos descrentes,
perante as suas promessas,
não as lessem às avessas
e não mostrassem os dentes.

Lembrado do pão amargo
que o diabo amassou,
quem dera fiquem ao largo,
pois com eles eu não vou.


© Domingos da Mota