28.8.16

Sem erros de paralaxe

De anjo só tinha a cara;
as asas, quando as abria,
pareciam de ave rara,
uma ave que subia
e descia quase a pique
e com tal velocidade,
mais veloz que o Sputnik,
essa outrora novidade
das que atravessam os céus
e percorrem os espaços
(sem serem anjos nem deuses),
mas que desdobram os braços
em busca doutras galáxias,
sem erros de paralaxe.


© Domingos da Mota


27.8.16

Duas chávenas

Tínhamos duas chávenas
em forma de meia lua
e uma triangular.
Quando alguém ia lá a casa
bebíamos os dois pelas meias luas
o convidado pela triangular.
Era uma regra da casa
nem escrita
nem pronunciada
apenas pressentida.
Até que alguém apareceu
e trocou os sítios das chávenas
a mim coube-me a triangular.
As regras eram mesmo assim
para quebrar
como as tartes
como as chávenas.
Será que ainda as podemos colar?

Ana Paula Inácio

2010-2011, Averno, Junho de 2011

21.8.16

OS LAGARTOS AO SOL

Expõe ao sol a perna escalavrada, 
no Jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.

E conversamos: «Helioterapia
medicina barata em Portugal».
Accionista do sol, ajudo à missa:
«But, não muito, que senão faz mal».

Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.

Talvez que, se o Briol nos conservara,
alguém um dia nos ajardinara.

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

18.8.16

OUTRA

Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo:  -- a luz do dia!
-- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
-- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água -- música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
-- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Botto

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Novembro de 1999

13.8.16

PENSANDO MELHOR

Mesmo em tardes muito quentes de Verão,
há sempre uma ave aventureira
que sobrevoa a terra.

(Pensando melhor, o que de facto há
é terra, apenas terra -- que a seu tempo
há-de sobrevoar o voo das aves.)

A. M. Pires Cabral

gaveta do fundo, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Novembro de 2013

11.8.16

EXERCÍCIO 24

o céu é uma floresta

e por vezes
quase no fim do dia
arde

Paulo José Miranda

EXERCÍCIOS DE HUMANO, abysmo, Lisboa, Maio 2014

10.8.16

LAVOISIER

Na poesia, 
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

Carlos de Oliveira

TRABALHO POÉTICO, Livraria Sá da Costa Editora, 3:ª edição, Lisboa, 1998

9.8.16

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho


Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

Mário Cesariny

Pena Capital, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 1999

2.8.16

O TABERNÁCULO

O tabernáculo fosco deste canto
a carica deitada no centeio
a reduzida mesa a que me encosto
do lado do passeio
Estar a milhas do marquês de Sade
Enfim ó meu vizinho terra mansa
Havemos de aleitar esta criança
democraticamente sem alardes
A cama há muito que não é refeita
(Falta a coragem de não ser turista)
      Sei dum quintal moreno
      Onde se criam pássaros
             Sem alpista

José Afonso

Textos e canções, 3.ª edição revista, Organização Elfriede Engelmayer, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Outubro de 2000