30.7.23

[havia chuva no corpo]

havia chuva no corpo
e não calava as perguntas
germinavam numa cadência
que não aprendera ainda
a reconhecer os despojos da fala

havia o cão dos instintos
que prosperava
no que a luz não ousava pensar
da sua alma

João Rios

ESTUÁRIO INCISO, Abysmo, Lisboa, Fevereiro de 2023:254

28.7.23

Ensaio sobre o silêncio

De todos os lados me sobram
pensamentos, assuntos, lapsos
de um minuto, curiosidades
metafísicas, ângulos de visão
aguda, sentinelas. Mas eu
escapo a estas armadilhas:
esborrato os dias em paz, ouço
a pedra do silêncio, rodeio
cada momento. Como se o mundo
se fosse afastando sem remédio,
com a bandeira porosa das palavras
a adejar ao vento.


Isabel Cristina Pires

O Planeta Irreal, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, 28 de Abril de 2023:99

25.7.23

passageiros clandestinos

se deus
ou um seu anjo
passar por aqui
escondamo-nos
nas suas barbas.


Fernando Machado Silva

Passageiros Clandestinos, Companhia das Ilhas, colecção azulcobalto, poesia, azores bookstores, 2012:29

23.7.23

Março lamacento

Março lamacento
no campo de cultivo lavrado
pelas botas dos soldados


*

muddy March
their crop field plowed
by soldiers' boots


Michael Dudley


[Stepping Stones, Red Moon Anthology, 2022]

O n.º 6  de 'Onze haikus' [Tradução/versão de Sérgio Ninguém]
in Eufeme n.º 28 Magazine de Poesia (Julho/Setembro 2023):82-83




17.7.23

[Ódio em banho-maria]

Ódio em banho-maria,
frustração a refugar,
eis o prato do dia
que há logo para o jantar.

Como aperitivo,
penúria ancestral
de um cadáver esquivo
esquisito surreal.

Há fel q.b. para beber
das melhores colheitas
de papel a arder
de frases feitas.

E para sobremesa,
antes dos charutos,
musse de tristeza
e sais de frutos.

Depois da pançada,
torpor prandial.
- Boa cagada!
- Obrigado, Portugal!


Vitor Silva Tavares

textinhos, intróitos & etc de vitor silva tavares [púsias], Pianola editores, 2017

15.7.23

Ode ao cocó

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar


Se um poio no chão
de cão ou de gato
deixado à mão
do pé ou sapato
pisado ao acaso
é uma arrelia
e tende a dar azo
a grande quezília
já que pode ser
a mina terrestre
capaz de tolher
o passo ao pedestre,

a caca no pote
(cocó no bacio)
que dá azo a mote
para o desfastio
de a merda ser
motivo de ensaio,
depois de o ler
na merda não caio.

© Domingos da Mota

14.7.23

Geminação

Pelo jornal de hoje eu
inesperado acabo
de saber que morreu
uma vizinha. Na casa
geminada com a minha.


Francisco José Craveiro de Carvalho

CINCO, Edições Sempre-em-Pé, Águas Santas, junho de 2023

6.7.23

O PRINCÍPIO DA REALIDADE

Se a arte
não for insubmissa
se não permanecer
desobediente
e não escapar ao controlo
é o quê?

Se a arte
não for insurrecta
se não permanecer
pedra viva escaldante
é o quê
a arte
se não disser Eu Sou?


Isabel de Sá

A ALEGRIA DA DÚVIDA, Antologia organizada por Graça Martins, Editora Exclamação, Lda., Porto, Junho de 2021:37

1.7.23

FALA DO RIO SENA A PAUL CELAN

Não será ainda o puro vazio
ainda não, ainda não o vazio puro

um camponês, não tarda, vai encontrar-te
mais abaixo, um pouco mais abaixo
por momentos alheio a seus
bucólicos trabalhos, a esse leite amarelado
que a natureza lhe oferece, e em que
bóiam os nós mais densos da gordura

não tarda vai encontrar-te, um pouco
mais abaixo e entre rosas vegetais e vivas
enleadas ainda em silvas e picos vários
vai encontrar-te um pouco mais abaixo
entre as glórias deslaçadas

e as cinzas dos campos que cruzaste
colhendo a melhor inspiração
de coisas gaseadas, e eis que
chegaste  a pont Mirabeau, também
ela suspensa e contigo para
mim precipitada

Ainda um pouco mais abaixo
na corrente um tudo nada já com sal
e seja, enfim, o meu gélido afago
o leito imensamente branco
e fundo da tua morte


José Manuel Teixeira da Silva

Os Pequenos Nós da Tempestade
, Língua Morta, Abril de 2023