31.3.16

ALMA, LAMA

No teclado [Webern], o que resta do exemplo indigno.
Nas margens do teclado (Alma, Lama) deixava esmaecer
Uns dedos por outros.
E a mão fechada preferentemente no  floreio encantatório da alma.
(A alma danada da lama não se acomoda na finura.
Paciência.)

José Emílio-Nelson

AMEAÇADO VIVENDO Obra Poética II [2005-2009], Edições Afrontamento, Lda., Junho de 2010

24.3.16

[Sedentos]

Sedentos
Damos o corpo ao corpo
nas vagas de areia

O ar queima
-- Meio-dia
Passa um bando de corvos

O seu crocitar cai
no céu vazio
cai

Manuel Silva-Terra
e Leonor Serpa Branco [Pinturas], CANTO CHÃO, Editora Licorne, 2015

21.3.16

A veia

Perdi a veia, ou melhor, se a tive,
alguma vez teria de a perder;
se uma veia com tónus sobrevive,
uma veia poética a valer
exprime-se do jeito de quem vive
de modo a dizer o indizível,
por muito que jamais se perspective
a forma de torná-lo atingível.
Perdi a veia, isto é, perdi
aquilo que se ganha em se perder,
esse modus que tanto persegui
com a pobre toada a condizer,
sem saber, todavia, se a matéria
sangrava pela veia ou pela artéria.

© Domingos da Mota

20.3.16

[De que árvore em flor]

De que árvore em flor
não sei --
Mas que perfume

Matsuo Bashô

O GOSTO SOLITÁRIO DO ORVALHO seguido de O CAMINHO ESTREITO, versões e introdução de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio 2003

12.3.16

[Se estás vivo]

Se estás vivo
aproveita a vida     A vida
é um desses convidados
que não te visita duas vezes

Kabir


O Nome Daquele Que Não Tem Nome, sessenta e três poemas de KABIR, versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Porto, Março de 2016

8.3.16

Subsídio para um bestiário de A. M. Pires Cabral

Em que língua corre um rio quando
atravessa a fronteira? Uma
lampreia hesita entre as margens do Minho
(incerta
insidiosa) que nome lhe hei-de dar? Na
margem direita em A Garda
dá pelo nome galego (do
lado esquerdo em Caminha toma 
o nome português)
a lamprea bilingue é como certos políticos
(virando à esquerda ou à direita conforme
segue a corrente). A lampreia-política fá-la
sempre pela calada -
foge quanto pode a ver o seu ardiloso nome
na ribalta de
um menu.

João Luís Barreto Guimarães

mediterrâneo, Quetzal  Editores, Lisboa, Março de 2016