26.12.15

MARTHIYA DE ABDEL HAMID SEGUNDO ALBERTO PIMENTA

26.


Vivemos
Na nossa própria terra
Como
Num campo de refugiados.

Todos perguntam:
Que estou eu a ver?

Ninguém tinha imaginado
Que a vida
Pudesse ser uma chaga
De aspecto incurável.

É provisório,
Dizem-nos,
Pois tencionam
Encaminhar-nos depois
Para outro campo
Que estão a tentar
Estabelecer:
Cercado a toda a volta
Das suas liberdades.

Alberto Pimenta

MARTHIYA DE ABDEL HAMID SEGUNDO ALBERTO PIMENTA, &etc, 2005

24.12.15

[Natal é uma voz circular]

Natal é uma voz circular
calor de um ovo na palha dos ninhos
e música de flautas habitando
a solidão dos caminhos

1979

Luís Veiga Leitão

POESIA COMPLETA, Organização de Luís Adriano Carlos e Paula Monteiro, Apresentação crítica de Luís Adriano Carlos, Edições ASA, Porto, Setembro de 2005

18.12.15

Terceiro soneto de Natal

Dissesse do Natal o muito que
se olha sem se ver, aquando e onde
o outro é transparente, como se
fosse um corpo invisível que se esconde,

alheio à roda-viva de quem estuga
o passo pra atingir o desejado
prazer de abraçar a própria fuga,
desprezando os caídos a seu lado;

dissesse do Natal o que é banido,
varrido pra debaixo do tapete,
o muito que apesar de escondido,
não deixa de pungir, como um ferrete,

como são e serão os sem-abrigo,
com a sopa dos pobres, por presigo.

© Domingos da Mota


7.12.15

AUTO-RETRATO

Poeta   é certo   mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa   mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento   ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos   uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate   disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.

José Carlos Ary dos Santos

OBRA POÉTICA, edições Avante! (5.ª edição), Lisboa, Julho de 1994

6.12.15

NADA DIREI

Nada direi do crocodilo.
É um bicho tímido, reservado, a quem a realidade magoa os dentes.

José Alberto Oliveira

ANIMAL ANIMAL um bestiário poético, organização Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Fevereiro 2005

5.12.15

DEZEMBRO

Tão baixo, possível. familiar,
o luar é apenas sujeira no céu.
Ainda mais abaixo, há grilos, mosquitos,
morcegos, a água barrenta
de um riacho, a doçura
dos frutos rachados pelos vermes
e também a aspereza
em rostos que o tempo tratou
como pedra que nunca foi movida.
Não fui uma ave migradora
e há rios que deixam de fluir
sem encontrar algo maior.

Daniel Francoy

CALENDÁRIO, Artefacto, Lisboa, Agosto de 2015

11.11.15

Decibéis

Ouço as altas figuras no velório
do arco do poder, com ar solene,
num raivoso libelo acusatório,
atreitas como estavam ao perene
ofício de mandar, tão costumeiro
na revelha alternância das cadeiras,
que perante o momento derradeiro
mais parecem pungentes carpideiras
com gritos lancinantes, desgrenhadas,
repletas de prenúncios cavilosos,
maus agouros terríveis, trespassadas
por olhares hostis ou duvidosos
e cujos estridentes decibéis
subirão em 2016

© Domingos da Mota


6.11.15

PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

2.11.15

VELHO FRAGMENTO, ENCONTRADO E COMPLETADO - CONSELHOS À JUVENTUDE

Se, quando consentires,
consentes por metade,
não tomes por virtude
a náusea que te invade.

Toma-a pelo que é:
desejo revoltado
por ser teu, sem que sejas
teu próprio corpo violado.

1954.

Jorge de Sena

PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969

19.10.15

OUTRAS COISAS

Outras coisas   no entanto
o amor e o desamor e também a
morte que nas coisas morre subitamente
o  lugar  onde  vais  de súbito

De súbito faltas-me debaixo dos pés
e noutros lugares   De ti é possível dizer
que te ausentaste para parte incerta
deixando tudo no teu lugar

Está tudo na mesma   Também a mim
tempo não me falta lugar sim
Onde cairás morta, flor da infância?
De súbito faltam-me as palavras

Manuel António Pina

AINDA NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO DO MUNDO CALMA É APENAS UM POUCO TARDE, a erva daninha, Porto, 1982 (2.ª edição)

10.10.15

O ar

O ar doutoral,
do grave ao agudo,
de quem afinal
examina tudo
e tudo comenta,
apura, analisa,
critica, sustenta,
censura, pesquisa
e tudo, mas tudo
peneira com jeito.

(O ar, sobretudo,
de amigo do peito
quando faz o ninho
atrás da orelha,
esse ar miudinho
que olha de esguelha).

O ar de teólogo,
de sumo expoente
que depois do prólogo
aguça o dente
à vichyssoise
que julga estar quase,
será de portento
ou de cata-vento?


© Domingos da Mota


1.10.15

Corrigenda

Onde se lê passado, deve ler-se presente.
Onde se lê presente, deve ler-se futuro.
Onde se lê futuro, deve ler-se ausente
Devido ao conformismo podre de maduro.

Onde se lê teimosia, deve ler-se desdém.
Onde se lê desdém, deve ler-se altivez.
Onde se lê altivez, deve ler-se também
A moscambilha em prol da avidez.

Onde se lê fumo, deve ler-se fogo.
Onde se lê fogo, deve ler-se tição.
Onde se lê tição, deve ler-se de novo
E apurar porque sim e saber porque não.

Onde se lê isto (e aquilo que arrasta),
Apesar do risco, deve ler-se basta.

© Domingos da Mota


21.9.15

CARTA A ADONIS, POETA SÍRIO-LIBANÊS

7.

Adonis: são remos os ciprestes?
            Ou os pulmões de um louco?
O "barbeiro" que me içou a vela
             no mastro das dores,
e me encheu a boca
de forragem destinada a animais,
não voltou a aparecer. Mas é
diabo a quem devo, tatuado
              no sangue,
o genoma
destes versos de Hakim Sanai:
«Toda a existência é simplesmente 
               o vento a teu favor!»

António Cabrita

COMBATE DE FLAUTAS, & etc, Lisboa, Setembro de 2003

17.9.15

GÉNESE

Sozinho, à margem do caminho, um verme.
Passam, repassam bandos pela estrada.
E alguns vão vê-lo... ou antes: vêm ver-me,
Com um dó que dói como uma chicotada!

Passam, repassam bandos pela estrada...
Levantam pó que desce a envolver-me.
E outros, por animarem a jornada,
Jogam à bola com minh'alma inerme.

Passam. E à margem do caminho, triste,
Respiro o pó que inda no ar persiste...
Cai das estrelas o silêncio, o espanto.

Qualquer coisa de absurdo me sufoca.
Maior do que eu, sobe-me a alma à boca.
Falta-me o ar, incho de angústia... - E canto.

José Régio

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras Editores, S. A., 1999

13.9.15

CARDIOGRAFIA

Para vos ver amigos
hoje ponho as minhas lentes
verde húmido de lágrima
hoje sois belos verticais mesmo gregos
vossas boas acções enumero
por límpidos dedos de água.

A raiva de muito vos querer
meu jasmim refractário foi
mas hoje que me suicido por vós
com a cálida tinta vos pinto
do meu terno olho de boi.

Natália Correia

O VINHO E A LIRA, Edição Fernando Ribeiro de Mello, Lisboa

6.9.15

O Monólogo do Merceeiro

XXVI



Livro dos fiados é arte


              o derradeiro


acha-se numa sacristia
à guarda das sombras


de Deus
e das moscas.


Ivo Machado


O MONÓLOGO DO MERCEEIRO, Insubmisso Rumor, Porto, setembro de 2015

3.9.15

Aylan Kurdi

Arrastado na fuga para a vala
Comum que aprofunda a crueldade,
Foragido da guerra ou de uma bala
Perdida nos confins da iniquidade,
Ao dar à costa, depois do naufrágio,
O corpo exangue do menino morto
Agravou a ferida do presságio
De que a esperança pode ser um porto
De desabrigo, de pavor, de medo,
De quem sendo novíssimo tem cedo
O caminho das pedras tão hostil
Ou das águas sem pé de um mar revolto,
Mar encrespado convertido em esgoto
De perdição e de cinismo vil.


© Domingos da Mota

Pequeno tratado das sombras, Edição Busílis, Dezembro 2018

30.8.15

[Na minha horta]

Na minha horta
colhendo fruta
sinto-me um ladrão

Yosa Buson

PRIMEIRO AMOR e outros poemas, Selecção e versões de Manuel Silva-Terra, Editora Licorne, outubro de 2013

21.8.15

A TRAIÇÃO

quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007

19.8.15

CANÇÃO DA MORTE PEQUENA

Prado mortal de luas,
sangue debaixo da terra.
Prado de sangue velho.

Luz de ontem, luz de amanhã.
Céu mortal de relva.
Luz e noite de areia.

Encontrei-me com a morte.
Prado mortal de terra.
Uma morte pequena.

Há um cão sobre o telhado.
Só uma das minhas mãos
atravessava sem fim
montanhas de flores secas.

Catedral de cinza apenas.
Luz e noite de areia.
Uma morte pequena.

A morte e eu, um homem.
Um homem sòzinho, e ela,
uma morte pequena.

Prado mortal de lua.
Trémula a neve geme
atrás de qualquer porta.

Um homem, e quê? Já disse.
Um homem sòzinho e ela.
Prado, amor, luz e areia.

Federico Garcia Lorca


TRINTA E SEIS POEMAS E UMA ALELUIA ERÓTICA, Tradução de Eugénio de Andrade, Editorial Inova Limitada, Porto, Janeiro de 1970

14.8.15

Peste grisalha

Falemos de peste, 
da peste grisalha,
se não te esqueceste
do homem de palha
que useiro e vezeiro
em ser desalmado
saiu a terreiro
e ofendeu o estado
que ora carregas
em cima dos ombros,
depois de refregas,
assombros, disputas,
caminhos, percursos,
canseiras, labutas.

E lê o discurso 
sobre o filho-da-puta,
se o apoiaste,
lhe deste o teu voto,
julgando que o traste
não era um garoto,
isto é, seria
alguém confiável
e não, quem diria,
um ser detestável.

Não esqueças a peste,
a peste grisalha,
de quanto perdeste,
mesmo que não valha
a pena a canseira 
de fazer as contas,
mas de tal maneira
que quando repontas 
ao tom do insulto,
te lembres do agravo,
por muito que o vulto
não valha um centavo.

© Domingos da Mota

(Versos 2 e 26, citam uma expressão lida e ouvida através da comunicação social; 
versos 15 e 16, citam o título de um livro de Alberto Pimenta). 


12.8.15

COMUNICADO

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Coimbra, 18 de Abril de 1961.

Miguel Torga

Antologia Poética, 4.ª Edição Aumentada, Coimbra, Execução Gráfica, G.C. - Gráfica de Coimbra, Lda., Abril, 1994

9.8.15

radiograma

Alegre   triste   meigo   feroz   bêbado
lúcido
no meio do mar


Claro   obscuro   novo   velhíssimo   obsceno
puro
no meio do mar


Nado-morto às quatro   morto a nado às cinco
encontrado perdido
no meio do mar
no meio do mar

Mário Cesariny

PENA CAPITAL, Assírio & Alvim, Lisboa, Março, 1999




7.8.15

SEM CABEÇA

Até mesmo a manhã custa a perceber.
É como se alguém me decepasse a cabeça a meio da noite
e as horas se enganassem à volta do meu pescoço.

É fácil retratar uma degolação poética
em tempos de barbárie
tecnológica.

Afinal acordei no meio de gente ainda com cabeça
e eu sou aquele avô que os media
sempre ensinam.

Desgraçados dos tais
vestidos de amarelo para melhor serem vistos
com a faca viva encostada à garganta.

Comecei com a manhã imprecisa
meio cego a procurar um verso meu no meio da bruma
com a delicada nervosa faca de papel.

O mundo é um globo de gente ajoelhada,
de cabeças suspensas. E eu ao sair, só, do sono,
decapito o poema.

Armando Silva Carvalho

A Sombra do Mar, Assírio & Alvim, Julho de 2015

5.8.15

[Um ritmo perdido...]

Um ritmo perdido...

Se uma pausa não é fim
E silêncio não é ausência,
Se um ramo partido não mata uma árvore,
Um amor que é perdido, será acabado?

Um ouvido que escuta,
Uma alma que espera...
- Uma onda desfeita
É ou já não era?

Ana Hatherly

Um ritmo perdido, 1958

M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, ANTOLOGIA DA POESIA PORTUGUESA, 1940-1977 VOL.II, Círculo de Poesia Moraes Editores, Lisboa, 1979

4.8.15

IN MEMORIAM

     à minha Mãe


Desaba o sol, o silêncio,
a dor no coração da terra
comovida; na levada

do tempo, no rigor da noite,
para sempre, desmedida.
Desaba a luz, o sentido - a vida.

© Domingos da Mota

Agosto de 2003

Pequeno tratado das sombrasBusílis, 2018

29.7.15

Oração das vésperas

Fazei, Senhor, com que os velhos se esqueçam
da pancada, do rombo que levaram;
que a amnésia se agrave e permaneçam
em busca dos tostões que amealharam,
de que foram sacados, despojados
no altar de voláteis decisões,
em nome do mercado, dos mercados
e de outras mercantis resoluções
e, sobretudo agora, tomai conta,
não deixeis uma réstia de memória
a quem pouco recebe e só desconta,
não vá trazer a lume a sua história
e pior, bem pior, mudar o voto
ou deixá-lo perdido em saco roto.


© Domingos da Mota

27.7.15

[O remoto rei dos corvos]

O REMOTO REI DOS CORVOS,
Edgar Allan Poe,
deixa cair do seu bico,
no centro de uma biblioteca,
os restos de uma musa.
Cansados de tanta melancolia,
os ratos montam à sua volta um circo.

«Annabel Lee», «Annabel Lee»,
guincham os bichos,
repartindo os ossos entre si.

Mostram os dentes,
esticam-lhe a pele.
Sabem que o poema
não tem outro precursor
a não ser a fome,
nem outro seguidor
a não ser o crime.

Golgona Anghel

COMO UMA FLOR DE PLÁSTICO NA MONTRA DE UM TALHO, Assírio & Alvim, Maio de 2013

24.7.15

[De barro somos, dizem os oráculos]

De barro somos, dizem os oráculos,
solícitas vozes do crepúsculo
ou das manhãs solenes, rituais.

De heróis e deuses falam
mitos e salmos, dou
tos compêndios de
subtil doutrina. Assim
de urtigas e de musgo
se alimentam as parábolas,
escreve a ciência
os seus epitáfios.

Albano Martins

VOCAÇÃO DO SILÊNCIO, Poesia (1950-1985), Prefácio de Eduardo Lourenço, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Fevereiro de 1990

6.7.15

Giánnis Ritsos

As palavras têm outra casca


As palavras têm outra casca
lá mais para dentro
como as amêndoas
e a paciência.

                                            1974

Giánnis Ritsos

POESIA MAIS-QUE-PERFEITA, Tradução Ana Leal, Edição Alma Azul, Coimbra/Castelo Branco, Fevereiro 2005

3.7.15

Bebendo o Sol de Corinto

Bebendo o Sol de Corinto
Lendo as ruínas de mármore
Percorrendo vinhedos e mares
Divisando adiante do arpão
Um peixe votivo que se escapa
Encontrei as folhas que o salmo do sol recorda
A terra viva que a paixão rejubila em abrir.

Bebo água, corto frutos,
Faço avançar minha mão pela folhagem do vento
Os limoeiros diluem o pólen de estio
As aves verdes dilaceram meus sonhos
Parto com um olhar
Um grande olhar em que o mundo se recria
Bebo desde o princípio até às dimensões do coração!

Odysseus Elytis

DEZASSEIS POEMAS DE ODYSSEUS ELYTIS, Traduzidos por Mário Cláudio, com um desenho de Rui Aguiar, o oiro do dia, Porto, Janeiro/1980

1.7.15

COISAS ACABADAS

Dentro do medo e das suspeitas,
com a mente agitada e os olhos aterrados,
fundimos e planeamos o que fazer
para evitar o perigo
certo que desta forma horrenda nos ameaça.
No entanto, equivocamo-nos, não está esse no caminho;
falsas eram as mensagens
(ou não as ouvimos, ou não as sentimos bem).
Outra catástrofe, que não imaginávamos,
brusca, torrencial, cai sobre nós,
e desprevenidos - como teríamos tempo - arrebata-nos.

Konstandinos Kavafis

POEMAS E PROSAS, Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1994

29.6.15

Duas

Duas moedas na mão
e um dicionário grego

Francisco Ruiz Udiel

Equipagem para descer ao Inferno, colhido em Notícias do Bloqueio

21.6.15

Ofício

Ofício de verão -
a sede abrasa o canto
insurrecto das cigarras 

© Domingos da Mota

10.6.15

[Eu cantei já, e agora vou chorando]

Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta quando,
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

Luís de Camões

Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Lisboa, Julho 2000

9.6.15

HERÓICAS

VIII

          (Sim, no século XX ainda se saqueiam 
              cidades.  E  nos  séculos  XXI,  e XXII
              e  XXIII...)


Depois do saque
violaram a rapariga da sombra nua!

Ah! tenho vergonha do sol e da lua.
Vergonha das flores de sangue a chorar
(porque nem todo o orvalho cai do Ar).
Vergonha da sombra a seguir-me no chão
de rastos, como um bicho de solidão...
Vergonha das nuvens, das pedras que piso,
dos olhos das crianças a voarem de riso,
dos soluços das mães
(o pão que elas comem)
e dos uivos dos cães
na noite medonha
do fuzilamento
à luz dos archotes
-- com a sombra a tremer
no muro do vento.

(Mas o pior é que o Homem
tanto sujou a morte
que até tenho vergonha
de morrer.)

José Gomes Ferreira

POESIA - I, Portugália Editora, Lisboa, Outubro de 1969
          

21.5.15

[em boa verdade houve tempo em que tive uma]

em boa verdade houve tempo em que tive uma
                                 ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
                                   e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
                      a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
                                                        estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
                                        sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que deveria morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
                                                 sua própria profundidade

Herberto Helder

Poemas Canhotos, Porto Editora, Maio, 2015

10.5.15

ENDECHA DOS MAIS NOVOS

Enquanto o nosso coração voraz
bate a descompasso com o da Terra,
não queremos ripostar demais à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

Compêndios de nojo, actas de festa,
são escrita tremida para nós,
mas não se lembrem autores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem
quando ao leme do ventre almareámos;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém.

Luiza Neto Jorge

A LUME, Texto fixado e anotado por Manuel João Gomes, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 1989

2.5.15

MANUAL DE INSTINTOS ASSASSINOS

Veneno



fui teu escravo
e tu minha dona
hoje ofereço-te
um cocktail
de beladona...

Eduardo Roseira

Manual de Instintos Assassinos, Versbrava Editora, Porto, Maio de 2015

12.4.15

CATÁLOGO DE PÁSSAROS DE O. MESSIAEN

Exactamente setenta e sete pássaros diferentes
repartidos por sete livros de música
Não chega só uma vida para contar a plumagem
as películas esvoaçantes do breu real
ou os saltos coloridos de espessura entre os galhos
Volteiam de transparência em transparência
trespassam o dia, bicam o nó da sombra

Aguardamos sob o peso do sol, névoas até aos ossos
preenchemos depois as noites com cifras de aérea
                                                            gravidade
humilde exercício, transposição luminosa
É o mundo todo visível, questão de paciência
invisível totalmente, olhos recomeçados?

Pequenos factos radiantes
corações de tempos demasiado vivos
registos sobreagudos, coisas de atenta surdez
Sobrevoam os intervalos mais discretos da terra
alheios ao peregrino, humano sobressalto
anjos ou penas pesadas da neve

Já nos visitavam nas coutadas da Silésia
pedradas, tiros, valas comuns em Stalag VIII A
A cotovia dos campos, o papa-figos dourado
maçarico real, chasco preto, melro azul

José Manuel Teixeira da Silva

Música de Anónimo [poesia, 2001-2009], Companhia das Ilhas, 2015

28.3.15

ABRIL E O SILÊNCIO

A primavera mostra-se  deserta.
A valeta, de um escuro aveludado,
rasteja ao meu lado
sem reflexos.

A única coisa que brilha
é o amarelo de flores.

Sou levado na minha sombra
como um violino
no seu estojo negro.

O que quero dizer
tremeluz fora do meu alcance
como prata
em montra de casa de penhores.

Tomas Tranströmer

50 Poemas, Tradução do sueco e nota introdutória de Alexandre Pastor, Relógio D'Água Editores, Lisboa, Julho de 2012

24.3.15

Herberto Helder (1930-2015)

Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.

Herberto Helder

DO MUNDO, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro de 1994

23.3.15

Com ou sem fé

Mesmo sem fé o coração se deita
a sondar o além, o que há-de vir
na época precisa da colheita
ou atrás do acaso que surgir
numa curva apertada, mais estreita,
que o apanhe e arraste sem tugir
nem mugir contra a sorte, se desfeita
for a sorte que possa possuir.
Com ou sem fé o coração descobre
que por muito que tente e se desdobre
a sondar, conhecer, ir mais além,
que nunca abarcará o infinito,
e mesmo que procure o inaudito,
ficará certamente muito aquém.

© Domingos da Mota


16.3.15

POEMA LIMO

De não ser deus nem bicho
nem sossego de pedra
de refectido lixo
faz-se o homem poeta

se de algo se de alga
a origem lhe é incerta
se bruscamente breve
qual círculo na água
o homem para que serve?

Natália Correia

O VINHO E A LIRA, Edição de Fernando Ribeiro de Mello, Lisboa, 1970

10.3.15

RELÂMPAGO

Não me orgulho de nada:
O mundo foi severo.
A conta, após contada:
Zero.

Anda à volta de mim
Quem não sabe quem sou.
Eu fui-me sempre assim.
Ou...?

Vejo os outros que passam
Pobres de ser alguém.
Inúteis, ameaçam
Quem?

Um nome vale um ano,
Ou apenas um mês.
Há-de descer o pano
Sem me chegar a vez.

                                          (2004)

António Manuel Couto Viana

RESTOS DE QUASE NADA E OUTRAS POESIAS, Averno, Lisboa, Janeiro 2006

1.3.15

Canção Final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

Carlos Drummond de Andrade

[Revista Bula]

27.2.15

PERIGO DE VIDA

É grande o risco da palavra no tempo
maior mesmo talvez que no mar
Eu fui à margem do dia despedir um amigo
e não houve no cais
iniciativa verbal que edificasse
uma só tenda para o nosso coração
Éramos peregrinos
que deixam a saudade de turistas
ausentes na rua de outono
Morríamos contra a curva dos dias
a morte rotativa e provisória

Tivesse a própria palavra lábios
e nenhum clima poderia
arrefecer-lhe o coração
Tivesse ela lábios e não seria
tão grave o risco no tempo e no mar

Ruy Belo

AQUELE GRANDE RIO EUFRATES, Introdução de José Tolentino Mendonça, Editorial Presença, Lisboa, Dezembro, 1996

26.2.15

DESCOBRIREMOS O NOSSO MOVIMENTO

Descobriremos o nosso movimento
quase uma folha,
ou quase uma pupila
que se inclinasse e só nos desse o tempo
de uma sombra passar e entrar no olvido.
Mas, sobretudo, veremos
pensar-se um ar antigo
que vem ao movimento
quando mover-se nem sequer é escrito.

Fernando Echevarría

POESIA, 1956-1979 - SOBRE AS HORAS [1963], Edições Afrontamento, Porto, 1989

24.2.15

PELE

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

David Mourão-Ferreira

OBRA POÉTICA (1948-1988), Introdução de Eduardo Prado Coelho, 3.ª edição, Lisboa, Maio, 1977

20.2.15

COMUNS

Criaste e destruíste:
o que nasceu   morreu
o que morreu   nasceu:
um círculo cresceu
de um outro círculo
e a linha recta fez-se
no tempo labirinto
e o perdido no ermo
ganhou luz no destino --
e todo o recriado
e todo o destruído
foram ambos à face
comuns da tua vida.

António Salvado

Essa Estória, Portugália Editora, Junho de 2008

17.2.15

PALAVRAS

Tocam-me
como lábios,
como beijos.
Pássaros, sedentos de ramos
e de sombra,
pousam-me nos ombros.
A movimentos de asa,
desenham-me ainda um corpo
- secreta arquitectura de água,
rasgada no vento.

Luísa Dacosta

(Poema para a colecção de postais "À Sombra do Mar".
1999 - A-Ver-O-Mar / Póvoa de Varzim)

colhido aqui

8.2.15

Jorge de Sena

HOMENAGEM À GRÉCIA


Os deuses, ladrões,
promíscuos, bestiais,
traiçoeiros, sádicos,
belíssimos às vezes.
Os escravos sacudindo
as oliveiras, remando
nas galés, dormindo
com os donos e as donas,
os filósofos conversam,
Édipo vaza os olhos,
os coros cantam e dançam.
Céu azul, terra seca,
o mar tão cheio de ilhas,
na trípode a sibila.
As colunas dos templos.
Como tudo é estátua de mármore,
e não importa a cabeça
que falta, e os braços
que também faltem,
e o sexo arrancado
pelo tempo ou a vergonha
de parra que novos padres
sonhem bem larga
e comprida. Os deuses
eram confusos. Com nomes
que variavam, lugares 
em que mudavam
de vida. Orestes
será perdoado. Mas
os discípulos de Sócrates
sentam-se na areia,
e o filósofo, diz
Aristófanes, ia
ver a marca lá deixada,
por não usarem cuecas.
Antígona  será morta.
E o vaso castanho e negro
é um caco. As fontes 
secaram. Lagartos
moram no capacete
de Agamémnon. Os deuses
comem galinhas cruas,
cabritos, cabras e bodes,
bebem sangue. Ladrões,
promíscuos, bestiais,
traiçoeiros, sádicos,
belíssimos. Às vezes,
Palas Ateneia emerge
da cabeça de Zeus.
O manto dela custa
muitos dracmas. Será
o dracma a moeda?

1961

Jorge de Sena

PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA 70 POEMAS E UM EPÍLOGO, Portugália Editora, Lisboa, 1999