17.12.18

OUTONO

Criei a alma. A vegetação de países
irrepetíveis. Vastos bosques orlam os caminhos. Os muros
dão para o mar. As aves pontuam o céu. As ondas
                                                             [arremessam-se
sobre o litoral. O poema é cruel,
indeciso.

Preparei a nostalgia violenta da criação. Sentei-me
nos bares marítimos de cidades inglesas, esperando barcos
que não vieram. Invoquei regressos, longas
viagens, percursos espirituais. Cada dia me trouxe
uma diferente sensação.

As folhas juncam o chão. O terror
assola o planalto, as populações mórbidas
do poente. Uma voz canta as mulheres obscuras
de Southampton. Chove no poema
há alguns anos. O poeta abre, finalmente,
o chapéu de chuva.

Nuno Júdice

A NOÇÃO DE POEMA, Publicações Dom Quixote, Março de 1972

13.12.18

Alma Perdida

Duas flores sobre a mesa
uma para ti, a outra
para o corvo
Eu não era uma pedra no jardim
uma estrela no céu
ou uma pena na asa das nuvens
eu era uma alma primitiva como o fumo
pairando no isolamento dos seres
entrando como as intimidades no coração
e no olhar
Eu não tinha terra
a minha presença era a ausência

Fui sempre o silêncio das fontes
o murmúrio das pedras abrindo-se à erva
ou a revelação da terra devastada

Deixa-me pois
e fecha-me como um livro qualquer

Duas flores sobre a mesa
uma para ti
a outra
para o corvo

Iusuf Abdelaziz


PEQUENA ANTOLOGIA DA POESIA PALESTINIANA CONTEMPORÂNEA, Selecção e tradução de Albano Martins com um desenho de Alberto Péssimo, Edições ASA, Porto, 2003

1.12.18

DE PASSAGEM

O tempo
passa
e não
se vê.

Não se
pressente
enquanto
passa.

Só se
sente
quando
passou.

É por
isso que
nunca
o temos.

Fernando Aguiar

O POSSÍVEL DA MEDIDA, Edição BUSÍLIS (Tropelias & Companhia - Associação Cultural), outubro 2018.

26.11.18

Um pequeno cemitério no Texas

Não importa
ser-se espanhol, branco ou outra coisa:

quando o vento sopra violentamente,
arrasta consigo as flores.


A small cemetery in Texas


It makes no difference
if you're Spanish or white or whatever:

when the wind blows too hard,
it blows the flowers away.

Howie Good

Eufeme magazine de poesia n.º 9 Outubro/Dezembro 2018, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho

24.11.18

DESENCONTRO

Que língua estrangeira é esta
que me roça a flor do ouvido,
um vozear sem sentido
que nenhum sentido empresta?
Sussurro de vago tom,
reminiscência de esfinge,
voz que se julga, ou se finge
sentido, e é apenas som.
Contracenamos por gestos,
por sorrisos, por olhares,
rodeios protocolares,
cumprimentos indigestos,
firmes apertos de mão,
passeios de braço dado,
mas por som articulado,
por palavras, isso não.
Antes morrer atolado
na mais negra solidão.

António Gedeão

POESIAS COMPLETAS (1956 - 1967), Portugália Editora, 3.ª edição, Lisboa, Janeiro de 1971

11.11.18

[Tanto pássaro à minha beira a meter-se]

Tanto pássaro à minha beira a meter-se
para entrar nos tercetos.
Já me irritei. Mandei-os tentar os sonetos.

Francisco José Craveiro de Carvalho

Quatro Garrafas de Água, Ilustrações de João Sobral, Companhia das Ilhas, Setembro de 2017

24.10.18

«NÃO FORA O GRITO...»

Não fora o grito         a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto         o riso
a serena postura
do cadáver na praia

Não fora a flor     a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela

Não fora o cais        a posse
do nocturno segredo
a víbora     o polícia
o tiro     o passaporte
a carta de Paris
a saudade da amante

Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo

Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição

Daniel Filipe


        (A Invenção do Amor e outros poemas)

LÍRICAS PORTUGUESAS II VOLUME, Selecção e Apresentação de Jorge de Sena, Edições 70, Lisboa - Dezembro 83

8.10.18

DUPLICIDADE DO TEMPO

O níquel, o alumínio, o estanho,
e outros assépticos elementos,
ao fim se corrompem: o tempo
injecta em cada um seu veneno.

A merda, o lixo, o corpo podre,
os humores, vivos dejectos
não se corrompem mais: o tempo
seca-os ao fim, com mil cautérios.

João Cabral de Melo Neto

POESIA COMPLETA 1940-1980, Prefácio de Óscar Lopes, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Maio de 1986

29.9.18

IMPROMPTU

E assim te foste, luz de vaga-lume,
feita de segredo e brevidade.
Impossível definir aquele perfume
que o teu surgir me trouxe nessa tarde.

Alberto de Lacerda


Labareda - Poemas escolhidos, Selecção e prefácio: Luís Amorim de Sousa, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Junho de 2018

22.9.18

CARÊNCIA

Eu não sei de pássaros
não conheço a história do fogo.
Mas julgo que a minha solidão deveria ter asas.

*

LA CARENCIA


Yo  no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.

Alejandra Pizarnik


Antologia Poética (edição bilingue), Tradução de Alberto Augusto Miranda, Selecção de Poemas de Alberto Augusto Miranda, António Sá Moura, Carlos Saraiva Pinto, o correio dos navios | estratégias criativas, Porto

19.9.18

FILMITALUS

1.

Quando se apagavam as luzes no Sonoro Cine
e no ecrã aparecia a palavra Filmitalus
a tremer como se estivesse à superfície
dum líquido sobre o qual fossem pingando
finas gotas de som (de cítara, parecia),

nós, que com quinze anos tínhamos entrado
(porque o polícia compincha fechou os olhos)
para um filme para maiores de dezoito,
já sabíamos que o filme que aí vinha
era dos 'tais' -- quero dizer, dos que mostravam
beijos que escaldam, alguma coisa
das coxas de uma mulher, alguma coisa
duma cena de alcova,

não demasiado, mas o suficiente
para mais tarde, já entre lençóis,
ajustarmos contas com a actriz, mediante
os manejos solitários do costume --
aquilo a que, por riso e não por pudor,
dávamos o pitoresco nome de gaiola.

2.

E isto no tempo em que Deus não era mais
que uma desajeitada
distorção de si mesmo e, pela severa
boca dos seu vigários, proibia
masturbações e manobras afins --

-- o que, uma vez apaziguadas as hormonas,
nos trazia ressacas contritas, arrependimentos,
juras de que aquela tinha sido a última vez.

Mas agora pergunto eu:
se nos queria castos, arredados do corpo,
porque permitia Deus que se fizessem filmes assim
e houvesse mulheres como Anna Magnani
-- que nos abrasavam e tão facilmente
forçavam as muralhas da nossa castidade?

A. M.Pires Cabral

Trade Mark, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, Agosto de 2018

17.9.18

Guerra

O dedo a tremer de uma mulher
Percorre a lista de vítimas
Na noite da primeira neve.

A casa está gelada e a lista é longa.

Estão lá os nossos nomes todos.

*

War


The trembling finger of a woman
Goes down the list of casualties
On the evening of the first snow.

The house is cold and the list is long.

All our names are included.


Charles Simic

o último soldado de napoleão, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição Sérgio Ninguém/Eufeme, Setembro de 2018

16.9.18

LOBOS? SÃO MUITOS

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

Hilda Hist


[Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, Ed. Massao Ohno, S. Paulo, 1974]

O POVO, MEU POEMA, TE ATRAVESSA, Antologia poética de língua portuguesa nos cem anos da revolução de outubro, Selecção e Prefácio, Francisco Duarte Mangas, Modo de Ler - Centro Literário Marinho, Lda., Porto

5.9.18

POESIA AMERICANA

Embora o nome deles
Não deva ser revelado,
Muddy Waters chamava-se
Mckinley Morganfield,
Howlin' Wolf chamava-se
Chester Burnett,
Bo Diddley chamava-se
Elias Mc Daniels,
Sonny Boy Williamson chamava-se
Aleck Miller,
Slim Harpo chamava-se
James Moore,
E Bob Dylan chama-se
Robert Allen Zimmermann.

José Pascoal

NERVO / 3 colectivo de poesia setembro-dezembro 2018

3.9.18

Museu Nacional do Rio de Janeiro

Não fosse o descaso
vulgar, asinino,
não fosse o desleixo
dos outros ou nosso,

não fosse o descuido
brutal ou supino
que diz que não pode,
mas que fala grosso,

não fosse a incúria,
não fosse o desprezo,
não fossem as teias,
não fossem as tramas,

não fosse o menoscabo,
o letal menosprezo,
a memória ferida:
não fossem as chamas.


© Domingos da Mota


1.9.18

cançoneta para um ausente

não sei se ainda bolinas
e se te é farta a colheita
dos apêndices
se trabucas ou petiscas
donzelas do intendente

não sei nem o ar de tua
tumba sequer desmente
se ainda inoculas
a rubros golpes de tinto
as musas dos sonetos

não sei sadino irmão
se há ainda eficaz
remédio
pois nesta bela choldra
muita lírica se assemelha
a putrefacto excremento

João Rios

Não é grave ser português, capa Pedro Pousada, Abysmo, Lisboa, Abril 2018

24.8.18

LEGENDA

Quero o silêncio perfeito
onde minha lembrança não abra rios de sangue.

Luís Amaro


DIÁRIO ÍNTIMO 
____________________

DÁDIVA E OUTROS POEMAS, 2.ª Ed., com prefácio de Albano Nogueira & testemunhos epistolares inéditos, &etc 2006

22.8.18

CRIA-SE A MORTE NO TEU LEITO ABERTO

Cria-se a morte no teu leito aberto
entre a rosa deleite e a buganvília
que em mim tinge-se o peito de vermelho
Sei que fazia sempre o meu nó cego

Na vaga cintilante dorme um monstro
marinho que se esconde nos desertos
Apenas se apercebem as doninhas
do rodar deste tempo noites frias

A cal viva lacrado um sobrescrito
existe algures no reino da Moirama
oscila o templo o pêndulo vazio
Cai nos espaços mortos do sigilo

José Afonso

Textos e canções, 3.ª edição revista, Organização Elfriede Engelmayer (1.ª edição, Organização J. H. Santos Barros), Relógio D'Água Editores, Outubro de 2000

15.8.18

Pintura

O céu não clareou completamente, depois da morrinha
No retiro secreto, a meio da jornada, demasiado preguiçoso
                                                                             para sair
Sentado observo a cor verde do musgo
Ele começa a trepar pela minha roupa.

Wang Wei

HABITAR O VAZIO, Versões e Notas de Manuel Silva-Terra, Editora Licorne

14.8.18

Do lado dos abrunheiros

Os frutos alternam entre o vermelho maduro e o verde,
Como se flores de novo desabrochassem
Na montanha, se queremos reter um convidado,
Oferecemos-lhe um copo de aguardente de abrunho.

Wang Wei

HABITAR O VAZIO, Versões e Notas de Manuel Silva-Terra, Editora Licorne

6.8.18

SONETO / SONETO

Poeta sou, se é isto ser poeta.
Distante, oculto, sibilino. Duro
pedaço de corindo, indício obscuro,
gota abissal de música secreta.

Amor apercebida já a seta.

Dor em riste, uma lança de amargura.
Espírito absorto, na sua clausura.
Imóvel, quieto, coração cata-vento.

Poeta sou se ser poeta é isto.

Angústia lancinante. Pavor surdo.
Velada melodia em contraponto.

Calado enigma atrás de intacto selo.

Meu sonho em fuga. Farto e carrancudo.
Na minha nau fantasma único a bordo.

13 de Abril, 1944


*


Poeta soy, si es ello ser poeta.

Lontano, absconto, sibilino. Dura
lasca de corindón, vislumbre obscura,
gota abisal de música secreta.

Amor apercebida da saeta.

Dolor en ristre lanza de amargura.
El espíritu absorto, en su clausura.
Inmóvil, quieto, el corazón veleta.

Poeta soy, si ser poeta es ello.

Angustia lancinante. Pavor sordo.
Vela melodía en contrapunto.

Callado enigma tras intacto sello.

Mi ensueño en fuga. Hastiado y cejijunto.
Y en mi nao fantasma único a bordo.

13 de abril, 1944


León de Greiff


TROCO A MINHA VIDA POR CANDEEIROS VELHOS / CAMBIO MI VIDA POR LÁMPARAS VIEJAS, Antologia Bilingue, Selecção|Hjalmar Greiff, Prefácio Jerónimo Pizarro, Tradução Gastão Cruz, Edição abysmo, Lisboa, Novembro 2014

4.8.18

POESIA

Insectos de lirismo,
Filamentos no ar,
Na hora obscura e verde,
No céu crepuscular.

Vibráveis e eu não via

Nem ouvia vibrar,
Mas a noite crescia,
Mas a tarde ficava...

Enxofre, febre, sono,

Roxas dálias paradas...
Fins de tarde que em mim
Dia e noite não morrem...

Seria o mar tão verde

Ou a tarde cenário?...
Zumbiam frágeis, frágeis
Insectos de lirismo...

Cristovam Pavia


35+15 Poemas, Prefácio de Carlos Poças Falcão, OPERA OMNIA - Edição, Distribuição e Comercialização de Livros, Guimarães, Julho 2018

2.8.18

Verão

Depósitos de cinzas por toda a terra.
Em alguns, as fogueiras do Holi*
ainda ardem lentamente.
Até a lua começou
a proteger-se do sol.


*Holi, também conhecida como festival of colours ou festival of love, é uma celebração 

hindu da primavera.


Summer

Ash pits all across the land,/In some, teh fires of Holi/still smoulder./
Even the moon has begun/to take refuge from the sun.

Eunice de Souza


Coração de Abacate, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Junho de 2018

1.8.18

A MULHER DE LOT / LA MUJER DE LOT

Ainda ninguém nos esclareceu
se a mulher de Lot foi transformada
em estátua de sal como castigo
pela curiosidade irreprimível
e pela desobediência apenas,
ou se ela se virou pois no meio
de todo aquele incêndio pavoroso
ardia o coração que mais amava.

*


Nadie nos ha aclarado todavía

si la mujer de Lot fue convertida
en estatua de sal como castigo
a la curiosidad irrefrenable
y a la desobediencia solamente,
o si se dio la vuelta porque en medio
de todo aquel incendio pavoroso
ardía el corazón que más amaba.

Amalia Bautista


CORAÇÃO DESABITADO, Selecção e tradução de Inês Dias, Desenhos de Débora Figueiredo, Averno | 2018

29.7.18

[DUAS SENTENÇAS / TWO SENTENCES]

1. Estou a tentar escrever um poema.

2. A vassoura está no canto.


*


1. I'm trying to write a poem.


2. The broom is in the corner.



Aram Saroyan


outono [de COMPLETE MINIMAL POEMS], tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, colecção: Poetas da Eufeme, edição de Sérgio Ninguém, Leça da Palmeira, Janeiro 2017

26.7.18

Dia cinco / Day five

Hoje o
carteiro trouxe-
-me um haiku
de Issa.

Pela

nova legislação
antiterrorista
teve de ser
traduzido
para Inglês
antes de ser
entregue.

Dezanove sílabas

em tradução literal.
Paguei mais portes de correio.

*


Today the

postman brought
me a haiku
from Issa.

Under the

new anti-
terror
legislation
it had to be
translated into
English before
delivery.

Nineteen syllables

in literal translation.
Excess postage was charged.

Mark Young


Tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Eufeme, magazine de poesia n.º 8, Julho/Setembro 2018

24.7.18

ESTÁTUA

Juventude de pedra,
Ó estátua, ó estátua do abismo humano...

Todo o tumulto após tanta viagem

Uma rocha corrói
À flor dos lábios.

Giuseppe Ungaretti


SENTIMENTO DO TEMPO, selecção e tradução de Orlando de Carvalho, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Fevereiro de 1971

20.7.18

ARTE POÉTICA

Este poema tem vírgulas
De sol,
Pausas de sombra,
Suores frios.

Não tem ele outra coisa:

Febre alta,
Ferida aberta,
Cratera nua.

Divindade vulgar,

Ícone destroçado,
Não nos resta senão
Fazê-lo.

Cada um sabe de si

E o poema de todos.

José Pascoal


SOB ESTE TÍTULO, Editorial Minerva, Lisboa, Setembro de 2017

19.7.18

Anúncio

Procura-se
escritor 
(fantasma)
para efabulação
de factos e 
feitos

torcidos 

distorcidos
(ditos 
desditos)
por altas 
baixas

figuras

do estado-a-que-isto-chegou,
e com prosa à altura
de um Nobel 
(da Mistificação).
Preço a combinar.


© Domingos da Mota



12.7.18

Falámos tantos anos de tão pouco

Falámos tantos anos de tão pouco
entre os campos
do corpo
a fala fende os dentes
o corpo que te ouve ampara
a tua fala

É o último dia mas que dia

poderia deter assim a boca
dizíamos ainda que viríamos
ouvir-nos um ao outro
a fala dolorosa encontra os dentes
e olho a tua boca como um corpo

Gastão Cruz


Teoria da Fala, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Julho de 1972

3.7.18

AVENTINO

1.


Tudo é divino e trágico,

saboreia-se o fel do verbo
o leito do delírio, a sílaba.

João Rasteiro


A DIVINA PESTILÊNCIA, Assírio & Alvim, Março 2011

4.6.18

Nocturno

Pelas duas da manhã o gato leva-me
à cozinha para 
me dar de comer. Hoje à noite atrasa a hora -
é esta a noite ideal para
a ilusão dos amantes (o que acontecer nessa hora
jamais 
aconteceu). Acordado o
pensamento é a minha geografia -
o que fazer às imagens que nenhum poema
reclamou (a
gota que cai da torneira é sempre
a mesma gota? O
mar que um búzio contém é
o da praia onde estava?) Às duas
torna a ser uma e
o gato leva-me ao quarto
(se a noite não traz respostas é
sempre o silêncio quem fala)
o gato que escreve com as patas tem decerto
algo a dizer.

João Luís Barreto Guimarães



nómada, Quetzal Editores, Lisboa, Maio de 2018

27.5.18

10. ANEL DE MOEBIUS À LAREIRA

                (É PRECISO REGAR O AMOR)


Se fosses uma árvore eu chegava lá pelas onze
com um cesto de vime para colher as tuas sombras
e dizias - olha amor, este mar no inverno
é uma lareira onde trocamos palavras de fogo e ar.
E assim dentro das palavras íamos crescendo um
para o outro, os nossos ramos dardejavam em vogais
sonantes e eu sabia de cor a luz entre os teus ramos
como tu aprendias a soletrar os meus pequenos frutos.
Se fosses uma árvore não era preciso dizeres-me
que não há fora ou dentro na topologia dos beijos
como se não tivesses olhado o manto irreversível
dos meus olhos, o meu corpo ondulando até mesmo
ao lugar onde respira. Só dizias - caminho por ti sem
princípio nem fim. Acho que querias dar-me todos os
poros do tempo, tocar-me em palavras macias que
nada esperam. Ficávamos a ver o ar quente subir
pleno de graça, talvez nos beijássemos porque o amor
gosta de lábios e saíamos sempre junto ao mar.
E dizias: - chega-te a mim, as formigas são vorazes
de água e não quero que este amor murche de estio.
Sacudíamos as crinas, o dorso, o quadril redondo como
deus o fez e sabias que o meu corpo só se deita no teu
corpo com aves esvoaçando pelo anel de Moebius:
objecto magnífico em que nascemos cada dia.

Rosa Alice Branco

Traçar um Nome no Coração do Branco, Assírio & Alvim, Porto, Maio de 2018

25.5.18

COMENDO UMA CEREJA

Como uma cereja e,
Comendo a cereja, o meu corpo
Pede as cerejas todas do mundo,
Mas não posso comer as cerejas todas do mundo,
Pois faltam-me as cerejas que comeram
Sócrates, Hipasos de Metaponto
E os velhos camponeses da Gália,
Ou até os escravos de Roma.
Assim, como uma cereja
E deixo o gosto de a comer
Ficar em mim pelo gosto
De todas as cerejas que possa haver.
Uma cereja como todas as cerejas,
Uma cereja por todas as cerejas.

Manuel Resende

Poesia reunida, Posfácio de Osvaldo M. Silvestre, Edições Cotovia, Lda., Abril de 2018

24.5.18

[Sobre o musgo escuto]

          4.

Sobre o musgo escuto
Pedras, digo

- estranha voz esta,
a do surdo.

Aurelino Costa

GADANHA [Sol & Locus], Modo de Ler - Centro Literário Marinho, Porto, 2018

20.5.18

Melros

Emigrados do campo,
deixaram-se ficar no burgo,
desde as primeiras casas
do tempo dos romanos.
Foram-se juntando outros
com o crescer dos lares e da gente,
perseguidos por fogos da floresta
e pela gula de bagas doces.
Frutificaram,
multiplicando-se, à imagem do nosso
Génesis, 1:28.
Na primavera fazem o ninho
entre as camélias,
e cantam, assobiam e saltitam,
e, velhacos, vão-me às cerejas todas.

Nuno Dempster

NA LUZ INCLINADA, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2014

14.5.18

CRISE DE FÉ

Quebrou-se-me um mealheiro.

Dentro de mim
já não tilintam
as moedas
dos teus olhos.

Ana Paula Inácio

ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno | 2016

29.4.18

Da sua relação com a poesia

Quando  Koslowski, após  um  dos seus  inúmeros  acidentes de
carro, está outra vez  preso  à  chapa, acontece  que  a  primeira
pessoa  a  chegar  ao  local  é  um  bem  conhecido  poeta   lírico
frustrado,  o  qual,  em  vez  de  lhe     administrar    os  primeiros
socorros, insiste  em ler-lhe, rapidamente, alguns dos seus mais
recentes  poemas, garantindo  que não  tomaria  muito tempo do
seu tempo. "O resultado disso", comentou Koslowski mais tarde,
"é que não só o meu  fémur, três costelas  e a minha clavícula se
quebraram, como também  se quebrou   a minha  relação com a
poesia".

Michael Augustin


UM TAL DE KOSLOWSKI, Tradução de João Claudio Arendt e João Luís Barreto Guimarães, edição do lado esquerdo, Coimbra / Fundão, Abril de 2018

28.4.18

BURBURINHOS

14


Não sabe rezar,
estranhamente,
o louva-a-deus.

João Manuel Ribeiro

BURBURINHOS | RUMBLES, Edição Busílis (Tropelias & Companhia - Associação Cultural), Maio de 2015


24.4.18

KOLYMBÍTRIA

O absoluto não é ter muitas coisa juntas,
Mas o quase nada que vibra no fim da tarde,
Quando as pedras se iluminam de dentro,
Com já saudades do sol que vai partir.

Manuel Resende

Poesia reunida, Posfácio de Osvaldo M. Silvestre, Edições Cotovia, Lda., Abril de 2018

23.4.18

SO(U) NETO

SONETO
SOU
      NETO.
SOU
     U
     NETO
DO
SONETO.

Fernando Aguiar


Estratégias do Gosto, Palimage, Terra Ocre - unip. Lda., Coimbra, Março 2012

22.4.18

Abril

De Abril recordo o ano, o mês e o dia
Que demarcaram o antes e o depois:
Se antes muita sombra nos traía,
Logo após a urgência tinha dois
Ou mais caminhos a seguir, trilhando
Por vezes o mais curto, tal a febre
Nos píncaros da pura agitação,

Do natural contágio, onde e quando
A fome de mãos dadas com a sede
Acicatavam a revolução.
De Abril recordo Maio e o seu primeiro
Dia de imensa multidão que sonhava
Ser livre o tempo inteiro e pedia
Trabalho, paz e pão.


© Domingos da Mota


11.4.18

QUEDA NA IMPOTÊNCIA

Lemos napalm e imaginamos napalm.
Como não conseguimos imaginar napalm,
lemos sobre napalm, até conseguirmos
imaginar melhor o que é napalm.
Então protestamos contra o napalm.
          Após o pequeno-almoço, emudecidos,
          vemos fotografias do que o napalm é capaz.
          Mostramo-nos retículas grosseiras 
          e dizemos: Estás a ver, napalm.
          É isto que eles fazem com napalm.
Em breve haverá volumes ilustrados
baratos, com melhores fotografias,
em que mais nitidamente se vê
do que o napalm é capaz.
Roemos as unhas e escrevemos protestos.
         Mas há, ao que lemos, 
         pior que napalm.
         E logo protestamos contra pior.
         Os legítimos protestos que a toda a hora
         nos deixam redigir  dobrar franquear têm impacto.
Impotência, testada em fachadas de borracha.
Impotência que põe discos: canções impotentes.
Sem poder, com guitarra. --
Porém, de malha apertada e tranquilo
o poder lá fora mostra a sua força.

Günter Grass

Às Vezes São Precisas Rimas Destas/Manchmal braucht man solche Reime (1914-2014), Edições Tinta-da-china, Setembro de 2017

5.4.18

Desdobrar a sombra

Desdobrar a sombra
para que da escuridão se faça ainda
o amplo passo da luz
nos nomes que há
por dentro da matéria.

Maria João Cantinho

Olga Revista de poesía galega en Madrid, n.º 4| Decembro 2017


28.3.18

ALGUNS POEMAS PORTÁTEIS

3.

um estudioso de munch
depois do roubo de «o grito»
criticou noutros historiadores da arte
a preocupação em restaurar o quadro
que não tinha voltado intacto
das mãos de ladrões

este estudioso defendia
que munch não ia querer saber de restaurar o quadro
nódoas negras e escoriações
eram apenas a marca de mais uma viagem
e munch ficaria contente em manter o quadro como estava

o estudioso pensava que munch não ia querer saber
porque o pintor amava coisas baratas
e pintava as suas obras com materiais baratos
e mantinha os seus cães perto da sua arte

Tatiana Faia

Um Quarto em Atenas, Edições Tinta-da-china, Lda., Janeiro de 2018

25.3.18

As palavras são coisas, 2

Se a tua boca as diz
e no teu rosto as vejo,
as palavras são coisas
quando as fere o desejo.

E quando dizes mar,
ou quando dizes norte,
não sei se não me acerco
de um bocado de morte.

Quando dizes barco,
ou quando dizes esfera,
há águas que transbordam
e inundam a terra.

As palavras são coisas,
as palavras são um perigo,
se acaso as pronuncias
quando não estás comigo.

E quando tu adormeces,
muda num sonho fundo,
tudo se desvanece
e deixa de haver mundo.

Bernardo Pinto de Almeida

A Ciência das Sombras, Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018

19.3.18

[constrói só o fim]

constrói só o fim
do poema

para o resto
é tarde demais

José Anjos

somos contemporâneos do impossível, abysmo, Lisboa, Dezembro 2017

14.3.18

LEITURA DE JORNAL

Enrolado pelas nuvens duma eternidade,
debruado pelas franjas de catástrofes cósmicas,
soletrado numa lentidão de milénios pela voz sintetizada e virtual
de Stephen Hawking,
podes tu alguma vez imaginar todo o espectro poético
da explosão do campo de Higgs?

100 000 milhões de gigaelectrões-volts não são bastantes
para tornar meta-estável
o campo desse senhor dos buracos negros,
e fazer dele
uma bolha de vácuo.

Tudo à velocidade da luz, é claro, que a partícula de deus
não é um caracol que vá deslizar
a sua vegetal e mansa paciência pelas folhas
do universo.

Mas a criatura irónica, imobilizada,
esse génio oráculo que fala através dos músculos da face,
esse cérebro de engenhos que desdenham de deus,
concentra no seu sorriso um fulgor natural,
talvez único,
e pretende, diz ele, seduzir as enfermeiras
com o sotaque do texas que lhe sai da máquina falante.

É um riso de fichas virtuais, e as meninges tremem
entre placas, galáxias, anjos megalómanos, funcionários divinos,
engenheiros do eterno e promotores da vida futura
na imensidão devoluta dos planetas.

Abençoado profeta, só eu não sei  por que deuses,
fruto absurdo das matemáticas dos tempos,
és o trânsfuga da história,
a imagem ambulatória do belo, próxima verdade de nós,
futuro reprodutor no universo.

Armando Silva Carvalho

A SOMBRA DO MAR, Assírio & Alvim, Julho 2015

12.3.18

Suite sem vista

V


Era o tempo das cerejeiras agressivas a avançar
pela rapariga dentro.

As paredes falavam, na suite sem vista,
palavras a avançar

pela rapariga dentro.

A rapariga cobriu-as com papel, folhas
arrancadas ao grande livro fechado

à chave
na gaveta da palavra.

Inês Fonseca Santos

Suite sem vista, Abysmo, Lisboa, Janeiro 2018

1.3.18

[Quem esculpiu o Amor]

Quem esculpiu o Amor
e o colocou junto
desta fonte, pensaria
que poderia subjugar
com água, tal fogo?

Zenodotus

POEMAS DA ANTOLOGIA GREGA versões de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Porto Editora, Fevereiro de 2018

26.2.18

Centro de saúde

III

Ala Norte
Piso Dois
Enfermaria Um
Cama Quinze
vazia.

Carlos Alberto Machado

Olga, Revista de Poesía Galega en Madrid, n.º 4| Decembro 2017

25.2.18

[Se pensas que a barba traz sabedoria,]

Se pensas que a barba traz sabedoria,
pede à minha cabra para ser Platão.

Luciano

POEMAS DA ANTOLOGIA GREGA versões de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Porto Editora, Fevereiro de 2018


1.2.18

ÚLTIMOS DESEJOS

Quero voar como os anjos
quero lavar os dentes com triflúor
quero o Belinho sem o Oliveira
quero cornear o duque de Kent

quero 250 de Platão bem passados
quero a destreza do okapi
quero ir ao Douro às vindimas
quero pagar com letrasset

quero vestir de linho (e do Veiga)
quero ser primeiro no Mundial
quero pudim francês com caramelo
quero ler um cabinda em verso branco

quero uma sequóia para o quarto
quero voar de Spitfire
quero esmurrar o Marcel Cerdan
quero a Maja Desnuda

quero-te de bicicleta
quero-te outra vez de bicicleta sobre as folhas
quero-te ouvir chegar de bicicleta
quero o som macio que fazia na mata a tua bicicleta

Fernando Assis Pacheco

Variações em Sousa, Angelus Novus - Cotovia, 2004

28.1.18

ELOGIO DA MAÇÃ

Elogias a maçã,
a textura, o perfume, a cor.
Prevejo um sentido para a solidão das coisas,
escrevi, há uns anos, assim, sem pensar.
Agora as mesmas palavras ganham significados terríveis,
verdadeiros.

Luís Filipe Parrado

NERVO/1 colectivo de poesia, Janeiro/Abril 2018, Editora Maria F. Roldão

27.1.18

A corda

Não perceberam,
não ouviram bem.
Cada um ia
na sua corda
a equilibrar-se.
Cruzaram-se e
empurraram-se.
Insultaram-se.
Traíram-se.
Amaram-se
um pouco
por engano
às vezes?
Quem sabe?
A corda partiu-se,
ficou só o vazio
para pôr os pés.

(SB, Set. 6, 2006)

João Camilo

Eufeme magazine de poesia n.º 6 Janeiro/Março 2018

25.1.18

DISJUNTIVA

Ter um gato no colo ou
vestir uma criança mudar uma cama
de lavado ou fazer uma canção
é muito mais belo
do que carregar uma arma dar pontapés numa bola ou
pilotar um motor ruidoso. Só que há
pouca gente para dar por isso.

Inês Lourenço

TELHADOS DE VIDRO  N.º 22 . NOVEMBRO 2017, Averno, Lisboa

20.1.18

MIRADOURO DE S. SALVADOR DO MUNDO

Quem trouxe o inferno para aqui
e o converteu em serrania
talhada, retalhada
de vastidões, fundões e penedia?

O pensamento gela nas palavras...

António Cabral

Poemas durienses, Prefácio de A. M. Pires Cabral, OPERA OMNIA - Edição, Distribuição e Comercialização de Livros, Guimarães, Novembro 2017

19.1.18

ANTÍSTROFE

Essa que um dia disse "fosse eu 
mais atenta aos sons e ouviria
gorgolejar a água", agora,
das árvores, ela ouve
o eco da folhagem sem o movimento.
Das ondas, escuta
a absoluta linha silente do horizonte.
De Bóreas, ela sabe 
que o inaudível vário vento
no que é diverso traz o mesmo.
E ouvinte de leitor, alheio e seu,
ela ouve o som das suas letras
e aprende que os silêncios breves
somente são um eco das palavras
e que o total silêncio é no Todo
o máximo eco para que tende a voz.

24/5/94

Fiama Hasse Pais Brandão

CANTOS DO CANTO, Relógio D'Água Editores, 1995