30.11.14

A LEBRE

Para o favorito bater o seu máximo
corre a lebre umas quantas voltas
puxando pelo andamento até que
à hora conveniente sai da pista
sem um gesto um adeus o que se diz nada
e da bancada vêm gritos
porém são para o outro que esse sim
pode ficar na história
efémera que seja dos recordes

também eu tenho pernas
mas nunca tão possantes
e coração
mas o normal da espécie
encosto pois para deixar
passar o favorito: lá vai ele
veloz como uma seta

                                                            Lisboa
                                                                      28/29-IX-95

Fernando Assis Pacheco

RESPIRAÇÃO ASSISTIDA, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro 2003

26.11.14

história de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

Mário Cesariny

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores, Assírio & Alvim, Lisboa, Março 2007

24.11.14

Máquina do mundo

O Universo é feito essencialmente de coisa
                                                           [ nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

António Gedeão

POEMAS ESCOLHIDOS ANTOLOGIA ORGANIZADA PELO AUTOR, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 6.ª edição, Novembro de 1999

18.11.14

Primeiro domingo

A tarde estava errada,
não era dali, era de outro domingo,
quando ainda não tinhas acontecido,
e apenas eras uma memória parada
sonhando (no meu sonho) comigo.

E eu, como um estranho, passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém se lembrava
vagamente (talvez tu),
num tempo alheio e impresente.

Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a tua existência,
que te aguardava ainda, no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de sentido.

Manuel António Pina

POESIA, SAUDADE DA PROSA uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2011

13.11.14

Manoel de Barros (1916-2014)

O FOTÓGRAFO


Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando um bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa 
mais justa para cobrir a sua noiva.
A  foto saiu legal.

Manoel Barros

ENSAIOS FOTOGRÁFICOS, Editora Record, Rio de Janeiro . São Paulo, 2000


6.11.14

DATA

                        à maneira de d'Eustache Deschamps


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo de coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

2.11.14

De profundis

Colho as flores negras do tempo
que murcharam no jardim;
os botões do pensamento
são da cor do tempo assim,
de luto face ao tormento
dos que chegados ao fim
deixaram em testamento
este negrume sem fim.
Do tempo não colho as rosas,
das searas o seu trigo;
e se adejam mariposas
o seu voo é tão antigo
que me perco, apesar
de ver a estrela polar.

© Domingos da Mota


1.11.14

FERIDA

Quebra-se o corpo em dois como se
estilhaços de tão puro cristal iniciassem
o alvoroço das terras,
hoje e sempre,
onde o arado não sepulta a espiga e à
espreita do outono
os melros recolhem o seu canto e as suas
asas,
onde os dedos afagam o gelo ou a
chama e o litoral chora os seus mortos
sacrificados
e a ferida não cicatriza e o dia nos
conduz à orla dos túmulos.

José Agostinho Baptista

AGORA E NA HORA DA NOSSA MORTE, Assírio & Alvim, Lisboa, Outubro 1998