29.12.23

O Tempo

O tempo, como um cavalo,
galopa a toda a brida:
ah, quem pudesse domá-lo
e refrear-lhe a corrida.

© Domingos da Mota

[revisto]

12.12.23

os poemas políticos não mudam o mundo

os poemas políticos não mudam o mundo
dizem os eruditos da palavra
sentados em confortáveis cadeirões
na real academia de letras de lisboa
fazendo horas para o repasto
para ser franco pouco valor dou aos eruditos
não escrevo para o presente
ouso ter a esperança de não ser lido na posteridade
e por outro lado não sei a que se referem
quando falam de poemas políticos

será talvez a noite dos lírios
que os preocupa
refastelados nos doutos cadeirões.


Manuel Maria Aboim

a noite dos lírios, Colecção Obscuro Domínio, Edições Afrontamento

2.12.23

Poderão chamar-lhe tudo

Poderão chamar-lhe tudo,
cata-vento, escorpião,
arrivista, sabe-tudo,
papa-hóstias, beija-mãos,
intriguista, linguarudo,
comentador de salão,
afectuoso, sisudo
de lesta contradição,
ora grave, ora agudo,
inimigo da família,
não!

Tanto apascenta 
o rebanho como tuge, 
sibilino,
ardiloso no amanho,
leva a água ao moinho 
na disputa pelo pasto,
o lugar 
na manjedoura,
como padrinho ou padrasto
dos nados 
em berços de ouro.

© Domingos da Mota

1.12.23

Efeito borboleta

No princípio era o sopro,
uma brisa incipiente
aprazível, sem o escopo
de açodar-se, de repente,

como vento que se agita
e passa de vendaval
numa espiral inaudita
na rota do temporal

a um temível tufão,
um ciclone, um tornado:
ao olho do furacão
que deixa tudo assolado.

O leve bater de asas
de pequenas borboletas
pode arrasar muitas casas
e cidades completas.

© Domingos da Mota

28.11.23

PALESTINA

Não são donos sequer da sombra
Que no chão projectam ao passar.

Tudo ou quase tudo lhes foi tirado
A terra, os ribeiros, as ovelhas dispersas pela terra
Os títulos de posse das pequenas quintas.

Tudo ou quase tudo
Menos o futuro amarrotado num bolso
Menos a esperança, menos o olhar.


José do Carmo Francisco

INVENTÁRIO DAS TRAVESSIAS,
 Antologia Poética, Organização Pedro Miguel Salvado, António Lourenço Marques, Moana Soto, Stefania di Leo, Carlos Serrão, Editora Labirinto, 2023, Fafe

14.11.23

A pedra

A mão -
que é flor do espírito.

Quem,
cercado em terra própria,

não deixará na mão
florir a pedra?

Junho, 2017

João Pedro Mésseder


A QUEM PERTENCE A LINHA DO HORIZONTE?
, Edição Página a Página - Divulgação do Livro, SA, Maio de 2020

9.11.23

[Decai co'a tarde a luz]

Decai co' a tarde a luz
quando o mundo declina o anoitecer
em que adormece.

Caem co' a calma as colinas breves
sobre as planícies azuis; Caem as folhas
como caíam aquelas aves que até hoje

caem, de poema em poema
e nem o seu corpo se destece
quando já na página de água navegam


Manuel Gusmão

Pequeno Tratado das Figuras, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2013

8.11.23

UMA VOZ VINDA DO OLIVAL

O eco veio do olival.
Eu estava crucificado no fogo
e dizia aos corvos: não me devoreis.
Eu poderia voltar a casa,
talvez chovesse
e a chuva pudesse...
apagar aquela madeira carnívora!

Um dia descerei da minha cruz.
Mas como poderei, então,
voltar a casa, nu e descalço?


Mahmud Darwich

O Jardim Adormecido e outros poemas, Selecção e tradução de Albano Martins, Campo das Letras, Editores, S. A., Porto, Maio de 2002

6.11.23

Vulgar

Do discreto cinismo que se alegra
com o ar de tristeza de quem passa,
ao abraço apertado que pespega
um beijo traiçoeiro na desgraça;
do encolher de ombros, como regra,
à crescente arrogância que perpassa
e balança entre o tom da cegarrega
e a malcriadez que embaraça,

às salvas: como está? - Assim-assim,
mais ou menos, cá vou, obrigadinho;
da cunha que se mete, porque sim,
à espera do favor, do favorzinho:
do muito que se faz e contrafaz
no país do vulgar tanto me faz.


© Domingos da Mota

3.11.23

Gaza - a ferro e fogo

Os vivos
não desistem
de viver
Os mortos também

Mohammed Al-As'ad


Por muito cerco cerrado
Por muitas bombas e bombas
Sobre um povo castigado
Com terríveis hecatombes
Por muito que os algozes
Com algum desembaraço
Acicatem as ferozes
Ocupações do espaço
Por muito que o ódio solte
A raiva desesperada
E a sanha de revolta
Acere o fio da espada
Por muito que a vingança
Espicace mil horrores
E o fiel da balança
Desvalorize os clamores

Por muita bomba assassina
Sobre Gaza - a ferro e fogo
Por muita carnificina
Por muito discurso torvo
Por muito que as crianças
Em vez de colo e de leite
Bebam o fel dos verdugos
E a céu aberto se deitem
Por muito pão proibido
Por muita água cortada
Por muito sangue vertido
Por tanta mulher matada
Por muito que os corpos fiquem
Sob os escombros inertes
Ou nasçam crianças mortas

Por muito que não despertes
Da cegueira selectiva
Que branqueia o morticínio
E vertas lágrimas sujas
De crocodilo à espera
Que o genocídio force
A suposta rendição:

Há um povo que resiste
À brutal ocupação

© Domingos da Mota




2.11.23

SABEDORIA DE CALÍGULA

Mandei-o descascar batatas,
respondeu-me que os astros auguravam bom tempo.
Decididamente era verdade
que o imperador fizera o seu cavalo cônsul.

1954

Jorge de Sena

Peregrinatio ad loca infecta, 70 poemas e um epílogo, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1969

28.10.23

As Bombas

Não há mais palavras a dizer
Só ficámos com as bombas
Que estouram dentro das nossas cabeças
Só ficaram as bombas
Que nos chupam o último sangue
Só ficámos com as bombas
Que dão lustro aos crânios dos mortos


Fevereiro 2003


Harold Pinter

Guerra, Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, Edições Quasi

15.10.23

PERGUNTAS DO AMANHECER

– Minha mãe, minha mãe
o pão é vermelho porquê?
– Porque o trigo está
sangrando,
filho meu,
um sangue que não se vê...


10 de Março, 2022


Yvette K. Centeno

Ventanias
, edição Eufeme, Leça da Palmeira, Setembro de 2023

11.10.23

!

Porque vivemos o que vivemos
porque vemos o que vemos
porque fazemos o que fazemos
passarei a pente fino todas as folhas
jornais, poemas, artigos, cartas
boletins, discursos
e eliminarei deles
todos os pontos de exclamação


Murid Al-Barghuti

Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea
, Selecção e tradução de Albano Martins, Asa Editores, S. A., Porto, Fevereiro de 2004

10.10.23

TEMPESTADE

Nos cordames as gaivotas
escutam o relâmpago que tomba com os cabos da âncora
para o leito do mar.

Trovão sobre o Carmelo.
Seu eco na raiz dos ciprestes.
Na orelha das cavernas.

David Rokeah

                   Tradução: J. Guinsburg / Zulmira Ribeiro Tavares

ROSA DO MUNDO 2001 POEMAS PARA O FUTURO, Assírio & Alvim, Lisboa, Abril 2001: 1556

9.10.23

A Era dos Vivos

Os vivos
não desistem
de viver
Os mortos também

Mohammed Al-As'Ad

Pequena Antologia da Poesia Palestiniana Contemporânea, Selecção e tradução de Albano Martins, Asa Editores, S. A., Porto

8.10.23

Bilhete de Identidade



regista lá:
eu sou árabe
e o número do meu B.I. é o cinquenta mil
e os meus filhos são oito
e o nono chegará depois do verão.
e então, isso chateia-te?

regista lá:
eu sou árabe
e trabalho com um bando de operários numa pedreira
e os meus filhos são oito.
trago-lhes das pedras uma
fatia de pão, e roupas e cadernos
e não peço caridade à tua porta
e não me encolho na tijoleira da tua entrada.
e então, isso aborrece-te?

regista lá:

eu sou árabe
eu sou um nome sem título,
paciente num país onde todos
vivem em convulsões de fúria.
as minhas raízes
rasgaram a terra antes do nascer dos tempos
e antes do abrir das eras
e antes do cipreste e da oliveira
e antes do despontar da erva.

o meu pai é da família do arado,
não de grandes senhores,
e o meu avô era lavrador,
sem educação, sem linhagem.
educa-me o assomar do sol antes da leitura dos livros,
e a minha casa é a barraca do caseiro,
feita de galhos e de canas.
e então, agrada-te a minha condição?
eu sou um nome sem título!

regista lá:
eu sou árabe
e a cor do meu cabelo é negra, cor de carvão
e a cor dos meus olhos é castanha.
e os meus sinais particulares são
sobre a cabeça um cordão em cima de uma cúfia,
e a palma das minhas mãos rija como um penedo
arranha ao toque.
e a minha morada:
eu sou de uma aldeia perdida, esquecida
de ruas sem nome,
e os seus homens estão todos no campo e na pedreira.
e então, isso aborrece-te?

regista lá:
eu sou árabe
tu roubaste os pomares dos meus avós
e a terra que lavrei
eu e os meus filhos todos,
e não nos deixaste nada, nem a nenhum dos meus netos,
senão estes penedos,
pois vai o vosso governo
levá-los, como se diz?
portanto
regista lá
à cabeça da primeira página:
eu não odeio os homens
e não ataco ninguém,
mas se tiver fome
como a carne do meu usurpador.
cuidado
cuidado
com a minha fome
e com a minha fúria.


Mahmoud Darwish


UM ÁRABE É UM ÁRABE, É UM ÁRABE, UM ÁRABE, breve antologia de poesia árabe, textos introdutórios, Daniel Ferreira e Joana Santos, versões e traduções, André Simões e Joana Santos, editora contracapa, 4.ª edição, Vila Meã, Setembro de 2023

1.10.23

ARRABALDE

Sabes do destino das ruas mais distantes
e aí persistem plenas as ausências
moradas de um abandono iluminado
Seguimos as pisadas que se perdem
o canto rouco das torrentes da poeira
demolidos portões, a ferrugem das passagens
Nos teus olhos outros olhos que se afastam
ao longe noutro arrabalde
e tudo disposto para sempre sem lugar


José Manuel Teixeira da Silva

Os Pequenos Nós da Tempestade, Língua Morta, Abril de 2023

28.9.23

Nove

Ele contou os amigos
pelos dedos da mão.
Reparei então
que a mão não tinha dedos.

Qassim Haddad

UM ÁRABE É UM ÁRABE, É UM ÁRABE, UM ÁRABE, breve antologia de poesia árabe
, textos introdutórios Daniel Ferreira e Joana Santos, versões e traduções André Simões e Joana Santos, 4.ª edição, contracapa, Vila Meã, Setembro de 2023:44

18.9.23

Pedestais

Posto o mau gosto
num pedestal,
será que gosta?
Que leva a mal?

Se leva a mal,
se abomina
e afirma tal,
toca o sino

(toque a rebate)
e junta hostes
para o combate?
Ou franze o rosto?

Será que o gosto,
o gosto estético
mal doseado,
tosco, patético,

provoca febre,
clamores, insultos?
Aumenta a verve
de alguns vultos.


© Domingos da Mota

17.9.23

Procurou de entre todos aquele que mais amava.

Procurou de entre todos aquele que mais amava.
Fê-lo em silêncio, afagando os cães
que envelheciam aos seus pés,
enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos
um rosário de sal.

Qual o lugar do meu discípulo dilecto, inquiriu.
Um homem lembrou-lhe então que ele partira
há muitas luas atrás,

carregando aos ombros um navio em chamas.

Desde esse dia a memória
não mais deixou de rondar a casa

e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas
subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.


Jorge Melícias


UMA ENTOAÇÃO SOBRE O FOGO, Officium Lectionis edições, Porto, 2021:37

12.9.23

FENÓMENO

Nem ver o eclipse total
nem esperar o cometa Halley:

O sorriso das mães
é o verdadeiro fenómeno.


Nuno F. Silva


Acorda com uma camélia na garganta, edição Debout Sur l'Oeuf, Figueira da Foz, Fevereiro de 2023:12

11.9.23

Breve consideração

à margem do ano assassino de 1973.



Que ano mais sem critério
Esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
Três Pablos de uma só vez.
Três Pablões, não três pablinhos
No tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos:
Neruda, Casals, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
Contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Tês Pablos cheios de Sol.
Um trio de imensos Pablos
Em gênio e demonstração
Feita de engenho, trabalho
Pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos
Picasso, Casals, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Tês Pablos de muita ajuda.
Três líderes cuja morte
O mundo inteiro sentiu...
Ô ano triste e sem sorte:

- VÁ PRA PUTA QUE O PARIU!


Vinicius de Moraes

História natural de Pablo Neruda - A elegia que vem de longe / Vinicius de Moraes -  apresentação de Ferreira Gullar; xilogravuras de Calasans Neto - 3.ªedição - São Paulo: Companhia das Letras, 2006

29.8.23

Rosa

Olhas a rosa que existe
quase oculta, junto à seiva
que dela fosse o limite
para que depois receba

os espinhos, um perfume
que se esperava, estas cores
iguais talvez ao vislumbre
de tudo o que em nós se torne

mais antigo, anterior
ao tempo de aparecer
já unida ao nosso corpo
como o perfume do ser.


Fernando Guimarães

Das Mesmas Fontes, Edições Afrontamento, Lda., Porto, Fevereiro de 2023:167

21.8.23

AOS VINDOUROS, SE OS HOUVER...

Vós que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O'Neill


DE OMBRO NA OMBREIRA, Publicações Dom Quixote, Setembro de 1969:75


19.8.23

Rondam morcegos

Rondam morcegos
pelos quintais,
tortuosos ademanes
de enlutada alegria.

Um silêncio côncavo
desce de um céu
inacessível
que uma réstia
de luz afunila.

Asfixiam as árvores
sob o coágulo dos frutos,
cuja requintada acidez
os pássaros debicam,
aturdidos de prazer.

Uma vertigem oblíqua
vara as águas paradas
da albufeira.

Nas vinhas,
os globos das uvas
arpoados
pelos insectos,
a gangrena
dos pirilampos,
a podridão da terra
pululante
de vermes
que as garças
degustam.

Um relento dúbio,
aviltante,
enlanguesce e supura.

E a indiferença,
como um véu,
caindo
sobre os vultos
na sombra,
tudo enleando,
tudo perfilando
na aura
aconchegante.

Uma aragem tímida
esmorece e desiste.

Imóvel na trave,
a forca esgarçada,
garrote para tanta
e tão escusada beleza.


João Moita

Que Túmulo em Que Talhão, Guerra e Paz Editores, Lda., Lisboa, 2022:17-19


13.8.23

EU NÃO FUI SEMPRE ASSIM

Eu não fui sempre assim. Eu fiquei assim
no dia em que encontrei no meu pratinho
de arroz-doce
um pêlo do bigode de Giordano Bruno.


A. M. Pires Cabral


Caderneta de Lembranças, Edições Tinta-da-china, Lda,, Novembro de 2021:143

10.8.23

SESTA

Dentro do bosque
os passos dum caçador.
Dentro da sombra
a cobra do calor.

E dentro do meu sono
outro sono maior.

Estalando as folhas secas
vai a cobra invisível.
Nas mãos do caçador
ainda a vida é plausível.

Só dentro do meu sono
toda a morte é possível.


Carlos de Oliveira

Trabalho Poético, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1998:61

9.8.23

passagem a limpo

O navio morto
que sobe a corrente
de que velho porto
era o adolescente?

Cingiam-lhe a boca
água e nevoeiro?
Tinha muita, pouca
falta de dinheiro?

Bom barco, subido
aos da mor igualha,
tens o ombro ferido
até à fornalha

E puxado a cabos
- este rei de oceanos! -
por ginasticados
loiros namorados
a diesel e canos

Foi-lhe a estrela má.
- E se recomeça?
- Vamos daqui já
enterrá-lo depressa.

Vai morto. Não sonha.
Não grita. Não soa.
Saiu-lhe a peçonha
pelo buraco da proa


Mário Cesariny

CESARINY UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores
, Assírio & Alvim, Março 2007

5.8.23

VERSOS DO POBRE CATÓLICO

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar
e é hoje a tua festa, agora é que me lembra, ó Senhora da Assunção
Estás muito bonita; estiveram a teus pés alguns momentos
brilhantes de fervor as presidentes de importantes movimentos
Mas tens a fronte fria e dois olhos brilhantes
Estava distraído. Não te sentes feliz
se o povo reza livremente o terço no país
e são muito cristãos os nossos governantes?

Nem palavras nem coisas nem a própria distracção será bastante
para fazer passar por cima dos mais próximos devotos esse olhar
que há-de envolver o grande corpo mudo justo mas distante

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar
e é hoje a tua festa, agora é que me lembra, ó Senhora da Assunção
Venho como um gatuno - o que rouba de frente, arrisca e puxa a faca
- depositar à superfície desse teu imenso olhar
poisado sobre os dias e os gestos e as águas na ressaca
entre aromas e fumos esta enorme incorrigível distracção
que me enche a vida o passo e o regaço e deixo finalmente [transbordar
                                                                                    
Era tudo o que tinha, era mais esta grande mágoa
de ter medo de vir, talvez por não saber nadar
no mar da piedade em que outros se comprazem


Ruy Belo

TODOS OS POEMAS I, [Tempo Duvidoso], Assírio & Alvim, 2004:208

30.7.23

[havia chuva no corpo]

havia chuva no corpo
e não calava as perguntas
germinavam numa cadência
que não aprendera ainda
a reconhecer os despojos da fala

havia o cão dos instintos
que prosperava
no que a luz não ousava pensar
da sua alma

João Rios

ESTUÁRIO INCISO, Abysmo, Lisboa, Fevereiro de 2023:254

28.7.23

Ensaio sobre o silêncio

De todos os lados me sobram
pensamentos, assuntos, lapsos
de um minuto, curiosidades
metafísicas, ângulos de visão
aguda, sentinelas. Mas eu
escapo a estas armadilhas:
esborrato os dias em paz, ouço
a pedra do silêncio, rodeio
cada momento. Como se o mundo
se fosse afastando sem remédio,
com a bandeira porosa das palavras
a adejar ao vento.


Isabel Cristina Pires

O Planeta Irreal, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, 28 de Abril de 2023:99

25.7.23

passageiros clandestinos

se deus
ou um seu anjo
passar por aqui
escondamo-nos
nas suas barbas.


Fernando Machado Silva

Passageiros Clandestinos, Companhia das Ilhas, colecção azulcobalto, poesia, azores bookstores, 2012:29

23.7.23

Março lamacento

Março lamacento
no campo de cultivo lavrado
pelas botas dos soldados


*

muddy March
their crop field plowed
by soldiers' boots


Michael Dudley


[Stepping Stones, Red Moon Anthology, 2022]

O n.º 6  de 'Onze haikus' [Tradução/versão de Sérgio Ninguém]
in Eufeme n.º 28 Magazine de Poesia (Julho/Setembro 2023):82-83




17.7.23

[Ódio em banho-maria]

Ódio em banho-maria,
frustração a refugar,
eis o prato do dia
que há logo para o jantar.

Como aperitivo,
penúria ancestral
de um cadáver esquivo
esquisito surreal.

Há fel q.b. para beber
das melhores colheitas
de papel a arder
de frases feitas.

E para sobremesa,
antes dos charutos,
musse de tristeza
e sais de frutos.

Depois da pançada,
torpor prandial.
- Boa cagada!
- Obrigado, Portugal!


Vitor Silva Tavares

textinhos, intróitos & etc de vitor silva tavares [púsias], Pianola editores, 2017

15.7.23

Ode ao cocó

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar


Se um poio no chão
de cão ou de gato
deixado à mão
do pé ou sapato
pisado ao acaso
é uma arrelia
e tende a dar azo
a grande quezília
já que pode ser
a mina terrestre
capaz de tolher
o passo ao pedestre,

a caca no pote
(cocó no bacio)
que dá azo a mote
para o desfastio
de a merda ser
motivo de ensaio,
depois de o ler
na merda não caio.

© Domingos da Mota

14.7.23

Geminação

Pelo jornal de hoje eu
inesperado acabo
de saber que morreu
uma vizinha. Na casa
geminada com a minha.


Francisco José Craveiro de Carvalho

CINCO, Edições Sempre-em-Pé, Águas Santas, junho de 2023

6.7.23

O PRINCÍPIO DA REALIDADE

Se a arte
não for insubmissa
se não permanecer
desobediente
e não escapar ao controlo
é o quê?

Se a arte
não for insurrecta
se não permanecer
pedra viva escaldante
é o quê
a arte
se não disser Eu Sou?


Isabel de Sá

A ALEGRIA DA DÚVIDA, Antologia organizada por Graça Martins, Editora Exclamação, Lda., Porto, Junho de 2021:37

1.7.23

FALA DO RIO SENA A PAUL CELAN

Não será ainda o puro vazio
ainda não, ainda não o vazio puro

um camponês, não tarda, vai encontrar-te
mais abaixo, um pouco mais abaixo
por momentos alheio a seus
bucólicos trabalhos, a esse leite amarelado
que a natureza lhe oferece, e em que
bóiam os nós mais densos da gordura

não tarda vai encontrar-te, um pouco
mais abaixo e entre rosas vegetais e vivas
enleadas ainda em silvas e picos vários
vai encontrar-te um pouco mais abaixo
entre as glórias deslaçadas

e as cinzas dos campos que cruzaste
colhendo a melhor inspiração
de coisas gaseadas, e eis que
chegaste  a pont Mirabeau, também
ela suspensa e contigo para
mim precipitada

Ainda um pouco mais abaixo
na corrente um tudo nada já com sal
e seja, enfim, o meu gélido afago
o leito imensamente branco
e fundo da tua morte


José Manuel Teixeira da Silva

Os Pequenos Nós da Tempestade
, Língua Morta, Abril de 2023

20.6.23

Teatro de sombras

Fosse o começo, mas é quase o fim;
e o fim começa quando principia
o lusco-fusco, a meia-luz que o dia
deixa medrar até que a noite em si
derrame a escuridão (o sol deserte
para o lado de lá do oceano),
enquanto deste lado sobe o pano
do teatro de sombras que promete
entrar em cena, sendo o palco o ser
que enche de ilusões o seu vazio
velado pela crença, e ao arrepio
da luz que a razão procure ter
sobre deuses vingativos ou demónios
no altar de incensados unicórnios.



© Domingos da Mota

17.6.23

SOMBRA

Para quê escrever mais?
Por favor não te iludas
no abismo onde cais
as palavras são mudas

Nada quer dizer nada
tudo quer dizer tudo
e há uma porta fechada
a deixar-te hoje mudo

preso ao estranho algoritmo
em que assim te supões
embalado no ritmo
de subtis sensações

quando ao longe imaginas
uma vaga silhueta
entre ruas e esquinas
da cidade secreta

ou uma sombra que passa
e não vês o que seja
ao receber a graça
do que em ti só deseja

a mais última paz
antes do infinito
como um verso que traz
o que nunca foi dito


Fernando Pinto do Amaral

Última Vida, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 2023

12.6.23

SENHORA VERMEER

À senhora Vermeer coube-lhe a sorte
de não caber nos quadros
de Vermeer, seu marido.
Não possuía o traço do anil
ou do ouro
que lhe caíam do regaço
como única declaração de posse
das jóias e do marido
que não era jóia nenhuma
como dizia a criada
que sabia como se cozinhavam as coisas
à rapariga do brinco
que ele pintou para sua desgraça.
A senhora Vermeer não ficou na História da Arte
só na das histéricas lágrimas
e inúteis posses,
desvairada e borratada
na sua pintura.


Ana Paula Inácio


Telhados de Vidro, N.º 11, Novembro 2008
, edição Averno, Lisboa

10.6.23

O tempo acaba o ano, o mês e a hora

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;
O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

Luís de Camões


LÍRICA, Fixação do texto de: Hernâni Cidade, Círculo de Leitores, Lda., Décima Edição, Setembro de 1984

28.5.23

OS HABITANTES TRANSPARENTES

Muitos homens solitários caminham
acompanhados por um vazio.

Com frequência detêm-se numa paragem
escura ou iluminada
e o acompanhante observa,
projectada numa parede,
a sua vida de ente desaparecido.

Habitantes transparentes cruzam
as cidades da nossa memória.

Os que transportam o vazio
dialogam com as imagens sucessivas
que o muro lhes devolve.

Levam, atada com uma corda invisível,
uma ausência.


Francisco Javier Irazoki

ANIMAL ABERTO, Antologia Poética 1977-2021
, selecção feita pelo autor, tradução de Ana Catarina M. Martins, edição Medula, Abril de 2023

20.5.23

O código de barras é uma grade de ferro

O código de barras é uma grade de ferro
nas janelas da prisão.
Não deixa ver a terra,
o sol a realçar a cor da urze,
os pinheiros, o mato, as silvas
com algumas amoras onde o diabo mijou.

O código de barras identifica tudo:

o silêncio dos gatos,
a dimensão do pénis,
o saldo imprevisto da conta bancária,
a água para iludir a fome,
a ineficácia das petições,
a televisão ligada por inércia,
as obras embargadas pela câmara,
o amor não correspondido.


António Ferra


Dos livros levanta-se um pássaro, edição do autor, Lisboa, Abril de 2017

15.5.23

FOLHAS

Duas folhas secas
de plátano
entram comigo
no elevador.
Também elas
empurradas
pelo vento.


José Alberto Oliveira


De Passagem, Assírio & Alvim, Maio de 2018

13.5.23

O fio

Ora tenso, ora lasso
o fio que liga à vida,
quantas vezes sem compasso
e à procura de saída.


© Domingos da Mota

8.5.23

Auto-retrato

com zoologia fundacional



Caranguejo pernóstico
que se disfarça com pala preta
e que tem por hábito gnóstico
ficar sempre no fim da sala

antes ficava na retranca
para poder jogar nas aulas ao galo
e viver no tanque de papel
as grandes guerras da batalha naval

agora não avança um passo
preferindo sempre o último assento
a cadeira mais pequenina
a de buinho
para fechar os olhos    libertar a mente
e ressonar à vontade
nos Concílios dos Deuses Marinhos


António Cândido Franco

Bestiário [poema de zoologia fundacional aplicada], Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Setembro de 2022

6.5.23

MANUAL DE QUÍMICA, ALGUMAS PÁGINAS

III


E tudo é tão frágil: a pedra, o ferro
os grandes veios do fogo,
tão quebradiço tudo, tão mortal:
as montanhas, os troncos das árvores
que crescem mil anos;
o caminho da água
teimosamente cavado,
e a gramagem do ouro,
o próprio diamante, orgulhoso,
condenado também
a desfazer-se: é uma questão
de tempo, e o tempo tem toda a paciência
do mundo.

Tão frágil tudo: os glaciares
e as cordilheiras, e a lei da gravidade,
e a insistência da lava.
Tudo, até a tua
palavra.


Pedro Eiras

NERVO / 18 colectivo de poesia (Maio-Agosto 2023), Editora: Maria F. Roldão

29.4.23

fado falado atribuído a Custódia Brites

(na Póvoa de Santa Iria)


berra a moleira
em cama de ferro
destrói a gamela
abre a garganta

inunda a pagela
com trigo e centeio
treslê duas linhas
rasura no meio
as lindas galinhas

a mãe entrevada
de língua à janela
canta o refrão
da moira encantada
de velho à trela


António Ferra

lengas e narrativas, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Junho de 2022

22.4.23

[Quando os vaqueiros começarem]

Quando os vaqueiros começarem
a fazer poemas
muitos novos estilos
surgirão
no mundo.


Ito Sachio

A Pedra-que-Mata, de Luís Pignatelli
, Poesia Japonesa, Uma Antologia do «Período Primitivo» ao «Estilo Moderno», fixação de texto, introdução e notas, Zetho Cunha Gonçalves, Editora Língua Morta, Dezembro de 2019

20.4.23

L'ÉTOILE A PLEURÉ ROSE / O ASTRO CHOROU-TE ROSA

O astro chorou-te rosa ao lobo das orelhas,
O infinito orlou-te branco a nuca, os rins,
O mar perlou-te rútilo as mamas vermelhas,
O homem sangrou negro no teu flanco em riste.


Arthur Rimbaud

                            1871; Poésies Complètes, 1895.

O Outono de Oitocentos, Antologia de Poesia traduzida por Margarida Vale do Gato, Edição FLOP, Agosto de 2022:182

19.4.23

O DEMÓNIO DE MAXWELL

Esquecer liberta energia sob a forma
de calor.

Recordar faz frio.


Rui Lage


Firmamento, Assírio & Alvim, Janeiro de 2022

18.4.23

[Esta não é a tua guerra]

Esta não é a tua guerra
no campo de batalha
não queiras ser herói

Faz-te de morto
fica quieto

Não levantes o pó
para isso
aprende a respirar

Resiste
até que a noite caia
sobre o campo
e o cubra de neve

Então levanta-te
caminha
como um fantasma gelado

Esquece que viveste entre mortos
- Será possível?


Manuel Silva-Terra


Estado Poético, Editora Eufeme, Leça da Palmeira, Fevereiro de 2023

17.4.23

A Casa de José Saramago

Tias, Lanzarote (Espanha)


O que transportaste entre os joelhos
num avião, cresce a caminho de um céu.

Alimenta-se da cinza
que povoa o chão da ilha.

Em redor do tronco há lava.
Pedaços colocados numa espécie de círculo.

Transportaste num saco de plástico
um tesouro que muitos observam
sem que lhes passe pela cabeça
essa ideia de tesouro.

De todas as maneiras de ser feliz
que dizias que conhecias
esta foi uma das melhores: teres trazido
para a terra uma semente.


m. parissy

incêndios de rua, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2023

14.4.23

Marias

As Marias mastigam bolachas maria
em vez do bife de alcatra
para poupar tempo e dinheiro:
tempo para lavar, secar, passar a ferro.
Arrastar móveis, aspirar, limpar o pó.
Tempo para substituir os naperons de renda,
as cortinas, as capas dos edredons, os lençóis

Tempo para cuidar dos filhos,
do cão, do gato, do periquito, do porco, das galinhas.
Tempo para semear ave-marias e flores nas jarras,
cruzes de sal debaixo do tapete

As Marias são tão choronas:
choram a picar cebola, choram a picar salsa,
choram a picar vida. Choram quando são tratadas
com sete pedras nas mãos

À noitinha, quando o amor chega a casa,
as Marias deitam-se de pernas abertas no sofá.
Desabitadas

Elas foram bonitas.
As Marias deviam receber medalhas de mérito.


Josefa de Maltezinho


Fracturas Expostas, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Novembro de 2022

11.4.23

Por vezes um poema é a dobra bem feita

Por vezes um poema é a dobra bem feita
dum lençol no estendal repleto
de peúgas cuecas e outras peças
importantes de roupa interior
resgatadas das nódoas suspeitas
e do escurecimento da mão


Carlos Alberto Machado

Fulgor, matéria, memória (sob o signo da navalha), Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Outubro de 2022:22

7.4.23

Escrito na areia

Nunca saberemos ao certo o
que Ele escreveu no chão
quando fariseus e escribas se acercaram
de Si. A única vez
que escreveu. Talvez um nome de mulher (as
letras de
M-a-d-a-l-e-n-a) ou quem o iria trair
quem o iria negar
quem sabe se um arabesco ou
uma forma geométrica (uma estrela de 6 pontas
ou um 8
mas deitado). Quem sabe
se o resultado de 70 x 7 (ou o
cálculo dos litros que transformou em Caná). Ou
podem ter sido somente as iniciais
do Seu nome caso em
que não saberemos se assinou
pelo Pai
(pela pomba) ou
por Si próprio.


João Luís Barreto Magalhães


aberto todos os dias, Quetzal Editores, Janeiro de 2023

6.4.23

Talvez a monja visse em meu olhar

XXVII


Talvez a monja visse em meu olhar
não o deus que renasce ao tê-la perto,
mas a luz que varreu do alto mar
os sonhos limpos e hoje é mar deserto.

Ou, não me vendo, só a si se visse,
atenta apenas ao deus que era nela,
se acaso, fora dela, o deus sorrisse
e uma flor não morresse, absurda e bela.

Pois, se assim fosse, fácil parecia,
idos sobre Teresa tantos anos,
não haver temor, pena, argila fria,

nem o Éden, devoluto e sem humanos,
da memória dos deuses levaria
verdes campos e os largos oceanos.


Nuno Dempster

Levitações. Monografia sobre Teresa de Ávila em 28 Sonetos Mais Um
, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Dezembro de 2022

5.4.23

PEQUENO DOCUMENTO

Um documento vivo
a mesa

Pulsando
inextricável
pelos nós da madeira

Árvores vivas
antes

Agora só fronteira
do pão
e da palavra:

Ana Luísa Amaral


E TODAVIA, Assírio & Alvim, Abril de 2015

4.4.23

Carpe diem

Depois será já tarde
não faltarão rosas secas no cesto dos papéis
recusaremos o perdão pelas faltas
tanto tempo assumidas
O vulcão dos dias não passará de um depósito
de lava petrificada
cada linha do corpo será um requiem surdo
e a moral fado barato de costas para o mundo
A vida é um aluguer de curta duração
licença apenas para atravessar a porta
sem direito retorno
Não precisaremos sequer de mais luz
quem veio viu e entregou-se ao vento
esqueceu todas as chagas
mas a dor não passou


José Manuel de Vasconcelos

Os grandes lagos da noite, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Novembro de 2021

2.4.23

ANTES DESTE E DE TODOS OS MISTÉRIOS

VII


Eis-me aqui
entre a argila e o inseto
a dois dedos da prosa
ou da língua e da coruja
sem mácula nem gravidade


David Bene

O Vazio de Um Céu sem Hinos
, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A., dezembro de 2022

31.3.23

Rigor filosófico

o contrário das minhas dúvidas
não são as minhas incertezas
ao contrário

o contrário das minhas ideias
não tem nada a ver
com as minhas ideias ao contrário

o contrário do contrário
nada diz do contrário


E. M. de Melo e Castro

POEMAS TARDIOS, Organização de Edson Cruz, SR TESTE Edições, Abril 2022

25.3.23

MIGRAÇÃO INTERIOR

A medida dos ventos, o número
das imagens, o volume do canto,
deram-me a exacta direcção
do olhar que procura os pássaros.

Talvez porque o seu rumo seja
esse que tomei, outrora, para
chegar ao centro, e aí pegar nessa
mão que se abriu para a luz do sol.

Muitas vezes, então, a cinza
e o ouro se juntaram, e essa poeira
de brilhos e de treva caiu à nossa
volta, desenhou as nossas sombras.


Nuno Júdice

Uma Colheita de Silêncios, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2023




22.3.23

VERTIGEM MUITO ANTIGA - MAR

quem ainda não escreveu sobre os gregos
que ponha o dedo no mar


João Habitualmente

Estátuas na Praça
, Apuro Edições, Porto, Setembro 2022




20.3.23

Às formigas faço perguntas

Às formigas faço perguntas
e por mais perguntas que faça
nada respondem
passam e nem reparam
indiferentes à chuva
ao sol
direcção ao nada -
Essa a beleza do mundo.


Ivo Machado

Miseriae, Guerra e Paz, Editores, Lda., Novembro de 2022

19.3.23

Súplica e é Domingo

A casa fecha - se de silêncio
assim o silêncio se fecha de casa

nada mais há para arder
a não ser esta metáfora sufocante
onde o fumo já não emerge das trempes
nem o pote aquece a sopa.

É tarde, eu sei
o forno do pão fechou-se
lacrado a bosta
só nos resta o pontapé à porta

A velha masseira de embolar a
fornada carunchou
e a pazinha de a dobar também

Só na tua mão, mãe,
principia o sinal
coberto pelo teu beijo.


Aurelino Costa

Casa e logradouro, Porto Editora, Fevereiro de 2023

14.3.23

O BARULHO DE DEUS

I


Ergo na cabeça a catedral da noite:
as pedras do pensar, os arcos do sentir,
as escassas frestas do meu ser vitral.
Quando a luz chega o ruído começa. Pode ser a guerra,
ou a matéria a clamar por clemência.
Mas é sempre um duelo
pela sobrevivência.


Armando Silva Carvalho

Ana Marques Gastão, António Rego Chaves, Armando Silva Carvalho TRÊS VEZES DEUS, Assírio & Alvim, Dezembro 2001

11.3.23

Quatro haicais

1

Em terra
o meu farol
é o mar.


2

Ponte de D. Luís --
aqui não existe abismo
que me feche os olhos.


3

Mudança de hora.
Atraso o relógio e sorrio --
com um ar estúpido.


4

Não é mais escura
que a do branco a sombra
do cisne negro.


João Pedro Mésseder


Acanto - Revista de Poesia - número 6, Edição e propriedade: Hora de ler, Unipessoal Lda., Leiria, Dezembro de 2022

8.3.23

POEMA

Um poema no inverno,
uma planta na primavera,
um insecto no verão,
um pássaro no outono,
o resto do tempo sou uma mulher.


Vera Pavlova

[Rússia, 1963-...]

Quando a Lua Desce à Terra, traduções de poesia de Jorge Sousa Braga, Edição Língua Morta, Fevereiro de 2023:14

6.3.23

QUANDO UM PAÍS

Quando um país de - em geral - pessoas simpáticas
se torna - lentamente - fascista,
as pessoas simpáticas não se apercebem dessa transformação
todas de uma vez.

Como quando uma pessoa que conhecemos intimamente
passa, ao nosso lado, através
de um imperceptível processo de envelhecimento.
Imperceptivelmente, novas rugas
assustadoramente profundas, cortam a pele.

As pessoas simpáticas acenam com a cabeça, quando se
encontram,
e tentam, cada vez mais, baixar os olhos,

até que finalmente, levantá-los, se torna um ato desumano.


Lyudmila Khersonskaya


(versão de Jorge Sousa Braga, a partir da tradução do ucraniano para inglês de Valzhyna Mort,
colhido no mural do Facebook de Joana Beleza, 5 de Março de 2019)

27.2.23

O CENSO POPULACIONAL DO VIETNAM

Se a guerra do Vietnam continuar
chegaremos a um ponto em que será fácil organizar
nesse país o censo populacional:
não haverá vietnamitas para contar
E os americanos acharão que não faz mal


Ruy Belo


HOMEM DE PALAVRA(S), Publicações Dom Quixote, Porto, Janeiro de 1970

24.2.23

SEIOS

Fechando os olhos, eram rosas
castas e densas, por abrir.
Líquidas pétalas nervosas
sentiam-se, no fundo, estremecer.

Lagoas, nuvens, lá por trás
da superfície cariciada?
- E a minha vida se desfaz
na saudade de fontes afastadas...


David Mourão-Ferreira

LIRA DE BOLSO, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1969

20.2.23

Alba

Que alegria de Maio
os olhos das crianças
respiram tão vivíssimos
que só eles nos dizem
os imensos segredos
das certezas escondidas...

Que sopro audaz quebrou
o nevoeiro denso
que nos confunde os passos
pelas estradas do mundo
onde a metralha soa
e a solidão é lei...

Que alegria de maio
nos olhos das crianças...


Tropos, 1969

António Salvado

in DiVersos - Poesia e Tradução, n.º 34 | outono 2022:34, Edições Sempre-em-Pé, Águas Santas

18.2.23

língua

Não me perguntes em que tristes
artérias viaja o veneno: as víboras

são, como sabes, bichos aleijados -
nem pés, nem mãos -, resta-lhes a

língua para cumprirem os sonhos.


Maria do Rosário Pedreira

o meu corpo humano
, Quetzal Editores, Junho de 2022:66




11.2.23

Calote metaphísico

A vida é curta
e a salvação difícil
Além de que a salvação pessoal
parece um negócio
dos mais duvidosos...

conviria primeiro saber
se a salvação em si
existe.

E se não existe...
então aquela força
e os sacrifícios todos
só pra no fim levar
o calote mataphísico!...


Zuca Sardan

DiVersos - Poesia e Tradução | n.º 34 outono 2022, Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas

1.2.23

A UNS AMIGOS PARTINDO-SE PARA A AMÉRICA

Estava emocionado como um cavalo
o pingo no nariz o forte flato
queria dizer restos de coisas felizes
se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa

soube sempre e dá-se por inteirado
que isto de amigos há que pô-los n'água
são rosas (são raros) são o que sobra
dos Invernos longos das geadas cruas

sem graça despediu-se é um azar
que ele tem; e despediu-se


Fernando Assis Pacheco

A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Novembro 2006:158

28.1.23

IN MEMORIAM CELAN

Coração flagelado que a acolhe [à Rosa de Ninguém].
Sanguínea, calcinada, coibida.
Opaca, sustida pelo carniceiro, desorbitada pelo Crime,
cerceada.
Redenção extasiada <dos que reprimem>.
(Língua libélula a ver-se esquiva.)
Besta [nazi] que a sofreia.
Vestuário gutural, sufocado.
Cume de infâmia que sustém
O seu fim coarctado.

José Emílio-Nelson

NERVO/17 colectivo de poesia (janeiro-abril 2023), Editora: Maria F. Roldão

19.1.23

DESPEDIDA

Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.



Eugénio de Andrade

POEMAS 1945-1965, Portugália Editora, Outubro de 1968

16.1.23

A IMPOTÊNCIA

Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo
inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.


Gräsen i Thule,1958


Harry Martison

O DESTINO DA ÁRVORE É TRANSFORMAR-SE EM PAPEL, antologia de poesia sueca, versões de Amadeu Baptista, edição contracapa, Vila Meã, Abril de 2022:38

15.1.23

Uma pedrada no segredo

A Manuel de Castro - Lisboa 1973*


Uma pedrada no segredo
Um pontapé no silêncio
Uma facada no amor
Um murro no olho do poeta

Um delírio de copos no «Estibordo»
Uma joint ao canto da «Opinião»
Um beijo de louco nos lábios da louca
Uma cozinheira de cutelo na mão

Um poema volante nas mãos do Cinatti
Uma rosa pintada nos lábios da Eunice
Um canivete afiado pelo Cabeça de Vaca
Uma filha tua a arder de desejo

Um saco cheio de loucura nas mãos do Pacheco
Uma rutilante sombra acesa na noite escura
Um desenho do Délio escorrendo sangue
Uma vagabunda sentada nas escadinhas do Duque

Sonhando sonhando sonhando


João Carlos Raposo Nunes

-----------
* A Ideia, nº. 73-74


Saímos em Bandos Disparando Brita, Prata, Fumos
, Antologia de João Carlos Raposo Nunes, Organização, edição e introdução de Nuno Miguel Neves, Maldoror, 2021:61






14.1.23

[De vida ou de suprema arte matemática]

De vida ou de suprema arte matemática
És amador
Contas plos dedos
Dedos incertos
Errando páginas
Onde sabes que todo o movimento é vão
Esperas apenas que o medo
Não te transforme em rato
Tens um olho no gato
E várias formas de contar
Que desta vez o cantar do galo
Anunciará um anjo pagão

A cidade amanhece o deserto é certo
O braço do rio parte donde o teu se descompõe

Ana Paula Inácio


QUARENTENA
"AO DESCONCERTO DO MUNDO"
Autores: Ana Paula Inácio, João Rasteiro, José Rui Teixeira, Rosa Alice Branco
Posfácio: Valter Hugo Mãe; Desenhos: Agostinho Santos, Editora Exclamação, Lda., Porto, Novembro de 2022:63

11.1.23

O LUGAR

Eles conversavam sobre a guerra
Sentados a uma mesa ainda por levantar.
Do outro lado da rua, a primeira janela
Da noite já estava iluminada.
Ele estava sentado, curvado, imóvel,
o velho medo acometendo-o...
Escureceu. Ela levantou-se para levar o prato -
Agora desagradavelmente branco - para a cozinha.
Lá fora nos campos, nos bosques
Um pássaro falava por provérbios,
Um Papa saía ao encontro de Átila,
A fossa estava pronta para o seu pelotão.

*

THE PLACE

They were talking about the war/The table still uncleared in front of them./
Across the way, the first window/Of the evening was already lit./
He sat, hunched over, quiet,/The old fear coming over him.../
It grew darker. She got up to take the plate -/ Now unpleasently white - to the kitchen./
Outside in the fields, in the woods/ A bird spoke in proverbs,/
A Pope went out to meet Attila,/ The ditch was ready for its squad.



Charles Simic


PREVISÃO DE TEMPO PARA UTOPIA E ARREDORES, selecção e tradução de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Abril 2002

8.1.23

50 GRAUS ABAIXO DE ZERO

Nas noites de janeiro
rangem os dentes das estrelas
ao morder
o pão do frio.

Nas noites de janeiro
navega a lua
como um ataúde
rumo ao seu gélido inferno azul.

Os bosques negros
estremecem.
Congelam as cortinas
da aurora boreal.

Nas noites de janeiro
resplandece
o punhal do frio
na mão da morte.

Palasin kottin, 1944

Arvo Turtiainen


O MUNDO ADORMECIDO ESPERA IMPACIENTE antologia de poesia finlandesa, versões de Amadeu Baptista, edição contracapa, Vila Meã, Julho de 2022

1.1.23

Um de Janeiro

Não me mostres nenhum norte
nem estradas para lá

A. M. Pires


Não me apontes directrizes,
azimutes, direcções;
o tempo, como as raízes,
não precisa de sermões,
de decretos e alvitres
e nem sequer de parábolas,
de conselhos e palpites ,
mnemónicas ou cábulas.
Não me indiques outro norte:
habituado a nortadas,
enfrentarei o desnorte
que transtorne as caminhadas,
se a fortuna, por acaso,
no decurso me der azo.


© Domingos da Mota