5.8.23

VERSOS DO POBRE CATÓLICO

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar
e é hoje a tua festa, agora é que me lembra, ó Senhora da Assunção
Estás muito bonita; estiveram a teus pés alguns momentos
brilhantes de fervor as presidentes de importantes movimentos
Mas tens a fronte fria e dois olhos brilhantes
Estava distraído. Não te sentes feliz
se o povo reza livremente o terço no país
e são muito cristãos os nossos governantes?

Nem palavras nem coisas nem a própria distracção será bastante
para fazer passar por cima dos mais próximos devotos esse olhar
que há-de envolver o grande corpo mudo justo mas distante

Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar
e é hoje a tua festa, agora é que me lembra, ó Senhora da Assunção
Venho como um gatuno - o que rouba de frente, arrisca e puxa a faca
- depositar à superfície desse teu imenso olhar
poisado sobre os dias e os gestos e as águas na ressaca
entre aromas e fumos esta enorme incorrigível distracção
que me enche a vida o passo e o regaço e deixo finalmente [transbordar
                                                                                    
Era tudo o que tinha, era mais esta grande mágoa
de ter medo de vir, talvez por não saber nadar
no mar da piedade em que outros se comprazem


Ruy Belo

TODOS OS POEMAS I, [Tempo Duvidoso], Assírio & Alvim, 2004:208

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