30.5.12

a página

a sua luz
me contradiz
ou será
me contraluz?

Ozias Filho

Páginas Despidas, Prefácio de Sílvia Furtado, Edição Ardósia Associação Cultural, Outubro de 2005

27.5.12

Solstício de verão

Amanhã e depois,
todas as tardes,
espero os grilos
que enchem ao
longe as noites
curtas, cada vez
menos curtas.

Margarida Ferra

CURSO INTENSIVO DE JARDINAGEM, & etc, 2010

23.5.12

SALMO

Não foi por mim que deixaste que te  pendurassem na cruz
não foi por mim
que te deixaste matar
Não foi por mim que deixaste que te insultassem e cuspissem
não foi por mim
que morreste
Ninguém se deixa matar assim
para cumprir a vontade do pai
- Pai Pai faça-te a tua vontade! -
Ninguém se deixa matar assim
porque um dia alguém se lembrou de oferecer uma maçã...
Não sei quantas maçãs já me ofereceste
sem que um anjo com uma espada de fogo viesse para nos expulsar
do nosso apartamento de três assoalhadas
Não foi por mim que tu morreste
e ressuscitaste ao terceiro dia
É uma herança demasiada pesada
para se deixar a alguém
que só viria a nascer dois mil anos depois
e cujo único pecado foi nascer
Não foi por mim nem por ti nem por ninguém
que tu morreste
e continuas a morrer todos os dias
Há quem não saiba fazer outra coisa senão morrer
e voltar a morrer
Nem a vontade do Pai te serve de alibi
Não foi por mim que tu morreste
embora eu seja capaz de morrer por ti

Jorge Sousa Braga

O NOVÍSSIMO TESTAMENTO e outros poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 2012

20.5.12

FALA DE CAMÕES MAIS UMA VEZ

Neste leito te tive
e me tiveste,
uma noite de verão
em que cantavam
os pássaros, a água,
as coisas todas,

mesmo que não houvera
disto nada
e tudo isto fosse só
de dentro

Mas pouco importa isso,
minha amada,
se o pensamento
engenha o que se passa

Neste leito te tive
e desejara
que essa noite de verão
aqui voltasse,
ou que nada de tanto
acontecera

Que os pássaros, a água,
as coisas todas
tivessem sido isso
igual a isto:

água real,
pássaros de verdade,
e nunca tu aqui,

nem eu,
um dia

Ana Luísa Amaral

A Génese do Amor, Campo das Letras - Editores, S.A., Porto, Abril de 2005

16.5.12

[As mães são outra coisa]

As mães são outra coisa
outra massa outra farinha
peneirada como quem semeia.
E de qualquer terra nasce o fruto
já maduro e elas teimam
que não está pronto para a colheita:
- não está e pronto

Rosa Alice Branco

CONCERTO AO VIVO, & etc, 2012

15.5.12

[Há palavras que não dizemos]

Há palavras que não dizemos
e que pomos sem dizê-las nas coisas.

E as coisas guardam-nas,
e um dia respondem-nos com elas
e salvam-nos o mundo,
como um amor secreto
em cujos dois extremos
há uma só entrada.

Não haverá uma palavra
dessas que não dizemos
que tenhamos colocado
sem querer no nada?

Roberto Juarroz

POESIA VERTICAL, Antologia, tradução e notas de Arnaldo Saraiva, Campo das Letras Editores, S.A., Porto, Junho de 1998

13.5.12

[O deserto está no fundo dos meus olhos]

O deserto está no fundo dos meus olhos.
E por todo o corpo as vagas cavidades
com suas flores de náusea
com suas estrelas mortas
e a paralisada adolescência das suas hastes
com um odor a morte.

A própria sonolência é uma sinistra
imersão no inferno.
Todo o corpo é um espaço devastado,
um túnel cilíndrico
povoado de moles nebulosas.
Só o falo se retesa
e se lembra que ainda sou uma centelha
e uma vibração solar.

O que ressoa ainda o que ainda treme
é uma delinquência que abortou
em pungentes imagens
cobertas de bolor.

António Ramos Rosa

TRÊS [Pequenas Combinações da Pátria e do Mau Tempo], & etc, Lisboa, 1995

7.5.12

[Neste mundo]

Neste mundo
Por cima do inferno
Contemplo as flores

Issa Kobayashi

PRIMEIRA NEVE [ haikus ], versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2002

6.5.12

OUTRO PARÊNTESIS: MÃE

A cortina de ramagens, mãe, eu arranquei-a,
não sabia que choravas lá por dentro
nem que os frouxos olhos de resina
por tuas lágrimas se derreteriam.
Concretizando: descobri nova cortina
ou vidraça talvez; de qualquer modo
protegia. Isto é: na nuca
não ardia tanto sol - era uma
cortina devagar.

Depois - os dias são tantos, tão iguais! -
dei em incendiar
o retrato que mantivera de ti, um tal
(deves saber) que eu recortava às vezes
com uma tesoura por nele te achar
parecida com uma lâmpada, tirado
por aquele Seabra Retratista, que,
não respeitando as tuas dimensões interiores,
extraiu do caixote um execrado rosto
(diziam que eras tu) que a mim me parecia
uma lâmpada.
Foi esse tal que pus a arder:
oh! consumi centenas. Quem podia adivinhar
que as mães são incombustíveis?
O retrato ardia e tu ficavas.
Era tal e qual a lâmpada da sala:
ardendo e resistindo.

E fiz mais: adivinhei por exemplo
uma ladainha eficaz contra a memória.
Recitava-a e não me apaziguava nem
remia - mas era assim, digamos,
como um mapa absorvente com  cidades
ou rios obrigatórios. Percebes: a gente
dizia-os e tinha que os cumprir - eis
a regra do jogo. E assim me libertava
da terna perseguição por ti movida.

Até que (para encurtar razões) nessa tal noite
em Coimbra (estávamos a duzentos
e tantos quilómetros um do outro)
te ouvi aquele suspiro. Se
foi suspiro ou não, tu o dirás. Melhor:
já disseste que foi apenas uma peça solta
de um choro aliás ininterrupto. A mim me pareceu
que suspiravas por uma dor tão lenta
que nunca te abandonava.
                                     Oh! Que suspiro
(ou choro, tanto faz)! Senti medo e piedade.
(Imagina a ironia: senti medo
e piedade! Imagina: piedade! Ó imensa
Pietá de carne e osso, tu já viste bem
o ridículo de eu haver sentido exactamente
piedade?)

Comecei pois com força a recompor
a cortina de ramagens (parecia-
-me agora uma capa de oleado
e estava toda cortada às franjas por acinte);
a salvar do cínico fogo posto
apressadamente
o retrato em que estás qual uma lâmpada;
a devorar (como um cão atropelado
ao próprio intestino) a ladainha.
Só que infelizmente
as coisas são duras e não ardem.
Faltam-me muitos dentes.
Parti o braço esquerdo na neve.
Não esperes, ó mãe, de mim o gesto denodado,
mas a paciente remissão - isso podes esperar.

O suspiro (ou choro) foi assim a centelha
da gloriosa recuperação. A longa
história ulterior (tu sabe-la
com a calma sapiência com que sabes
tudo o resto), isso
quase nem vale a pena recordar:
é um  fruto dissidente de nossos afectos mútuos.
Para exemplificar: tu sempre
me desculpavas à face do povo
e em troca eu trazia-te encerrada na boca;
tu, sofrendo como sofres de tanta doença,
me curaste algumas vezes (uma, de dedo em riste,
me expulsaste do corpo uma otalgia;
foi no tempo em que havia uma osga no quarto).
Trocávamos serviços com frutos nas mãos.
Não havia aqui, te juro, algum complexo
de Édipo, mas o ventre
teu imputrescível venerei.

Havia, é certo, as vulgares convulsões:
normalmente apenas as pequenas coisas
de que tecíamos a ténue trama
da nossa porção diária de infortúnio.
Houve a mudança de casa,
casamentos, nascimentos na família,
a primeira morte do pai (de que aliás
mal ressuscitaria). Tudo
corria estreitado entre os teus claros
ciúmes e a nossa liberdade. Reinavas
na cozinha, empunhando a colher.
Os dias eram iguais: tal o estatuto.

Um dia faltou-te o companheiro -
e foi mais complicado.
Choraste (era verão, que bem me lembro!),
parecia
que nunca te as lágrimas estancariam;
opuseste resistência à saída da urna;
de trapos negros te velaste -
ficaste um volumoso vulto enternecido
a buscar nos cantos vazios a sombra ida
para Alvites em 18 de Junho.

E é subitamente que todos damos conta
de que já não estás jovem como quando
eras a mãe de todas as crianças.
Tremem dentro do vasto corpo negro
muito antigos temores de envelhecer
incompletamente, isto é: à míngua de ritos.
Mas eu digo: porei um pouco de ordem
nos teus tão bizarros sentimentos;
pagarei, se necessário, todas as licenças
para que, envelhecendo, o faças por inteiro.
E mais: que a remanescente
peregrinação nunca te seja
de escândalo ou escrúpulo motivo:
o teu filho é virgem de sufocações
e ignora as virtudes de morrer.
Se um dia tu morreres (do que duvido,
tu és incombustível,
                             sê incombustível!)
morrerei em ti a minha parte -
como quem divide uma herança, sem buscar
dela a melhor sorte, a mais sonhada.
Morrendo em conjunto, morreremos menos.
Daí à eternidade é só um passo.

A. M. Pires Cabral

publicado aqui graças à generosidade do Poeta, que agradeço, este poema foi editado originalmente em Algures a Nordeste (1974), e posteriormente em Antes que o Rio Seque - poesia reunida, Assírio & Alvim, 2006 

3.5.12

AS VOZES

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

Manuel António Pina

NENHUMA PALAVRA E NENHUMA LEMBRANÇA, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro 1999

2.5.12

NOCTURNO DO PORTO

Rosas amarelas e vermelhas
e sem cheiro
vagueiam no nevoeiro

Jorge de Sousa Braga

FOGO SOBRE FOGO, Fenda Edições, Lda., Lisboa, Fevereiro de 1998