6.5.12

OUTRO PARÊNTESIS: MÃE

A cortina de ramagens, mãe, eu arranquei-a,
não sabia que choravas lá por dentro
nem que os frouxos olhos de resina
por tuas lágrimas se derreteriam.
Concretizando: descobri nova cortina
ou vidraça talvez; de qualquer modo
protegia. Isto é: na nuca
não ardia tanto sol - era uma
cortina devagar.

Depois - os dias são tantos, tão iguais! -
dei em incendiar
o retrato que mantivera de ti, um tal
(deves saber) que eu recortava às vezes
com uma tesoura por nele te achar
parecida com uma lâmpada, tirado
por aquele Seabra Retratista, que,
não respeitando as tuas dimensões interiores,
extraiu do caixote um execrado rosto
(diziam que eras tu) que a mim me parecia
uma lâmpada.
Foi esse tal que pus a arder:
oh! consumi centenas. Quem podia adivinhar
que as mães são incombustíveis?
O retrato ardia e tu ficavas.
Era tal e qual a lâmpada da sala:
ardendo e resistindo.

E fiz mais: adivinhei por exemplo
uma ladainha eficaz contra a memória.
Recitava-a e não me apaziguava nem
remia - mas era assim, digamos,
como um mapa absorvente com  cidades
ou rios obrigatórios. Percebes: a gente
dizia-os e tinha que os cumprir - eis
a regra do jogo. E assim me libertava
da terna perseguição por ti movida.

Até que (para encurtar razões) nessa tal noite
em Coimbra (estávamos a duzentos
e tantos quilómetros um do outro)
te ouvi aquele suspiro. Se
foi suspiro ou não, tu o dirás. Melhor:
já disseste que foi apenas uma peça solta
de um choro aliás ininterrupto. A mim me pareceu
que suspiravas por uma dor tão lenta
que nunca te abandonava.
                                     Oh! Que suspiro
(ou choro, tanto faz)! Senti medo e piedade.
(Imagina a ironia: senti medo
e piedade! Imagina: piedade! Ó imensa
Pietá de carne e osso, tu já viste bem
o ridículo de eu haver sentido exactamente
piedade?)

Comecei pois com força a recompor
a cortina de ramagens (parecia-
-me agora uma capa de oleado
e estava toda cortada às franjas por acinte);
a salvar do cínico fogo posto
apressadamente
o retrato em que estás qual uma lâmpada;
a devorar (como um cão atropelado
ao próprio intestino) a ladainha.
Só que infelizmente
as coisas são duras e não ardem.
Faltam-me muitos dentes.
Parti o braço esquerdo na neve.
Não esperes, ó mãe, de mim o gesto denodado,
mas a paciente remissão - isso podes esperar.

O suspiro (ou choro) foi assim a centelha
da gloriosa recuperação. A longa
história ulterior (tu sabe-la
com a calma sapiência com que sabes
tudo o resto), isso
quase nem vale a pena recordar:
é um  fruto dissidente de nossos afectos mútuos.
Para exemplificar: tu sempre
me desculpavas à face do povo
e em troca eu trazia-te encerrada na boca;
tu, sofrendo como sofres de tanta doença,
me curaste algumas vezes (uma, de dedo em riste,
me expulsaste do corpo uma otalgia;
foi no tempo em que havia uma osga no quarto).
Trocávamos serviços com frutos nas mãos.
Não havia aqui, te juro, algum complexo
de Édipo, mas o ventre
teu imputrescível venerei.

Havia, é certo, as vulgares convulsões:
normalmente apenas as pequenas coisas
de que tecíamos a ténue trama
da nossa porção diária de infortúnio.
Houve a mudança de casa,
casamentos, nascimentos na família,
a primeira morte do pai (de que aliás
mal ressuscitaria). Tudo
corria estreitado entre os teus claros
ciúmes e a nossa liberdade. Reinavas
na cozinha, empunhando a colher.
Os dias eram iguais: tal o estatuto.

Um dia faltou-te o companheiro -
e foi mais complicado.
Choraste (era verão, que bem me lembro!),
parecia
que nunca te as lágrimas estancariam;
opuseste resistência à saída da urna;
de trapos negros te velaste -
ficaste um volumoso vulto enternecido
a buscar nos cantos vazios a sombra ida
para Alvites em 18 de Junho.

E é subitamente que todos damos conta
de que já não estás jovem como quando
eras a mãe de todas as crianças.
Tremem dentro do vasto corpo negro
muito antigos temores de envelhecer
incompletamente, isto é: à míngua de ritos.
Mas eu digo: porei um pouco de ordem
nos teus tão bizarros sentimentos;
pagarei, se necessário, todas as licenças
para que, envelhecendo, o faças por inteiro.
E mais: que a remanescente
peregrinação nunca te seja
de escândalo ou escrúpulo motivo:
o teu filho é virgem de sufocações
e ignora as virtudes de morrer.
Se um dia tu morreres (do que duvido,
tu és incombustível,
                             sê incombustível!)
morrerei em ti a minha parte -
como quem divide uma herança, sem buscar
dela a melhor sorte, a mais sonhada.
Morrendo em conjunto, morreremos menos.
Daí à eternidade é só um passo.

A. M. Pires Cabral

publicado aqui graças à generosidade do Poeta, que agradeço, este poema foi editado originalmente em Algures a Nordeste (1974), e posteriormente em Antes que o Rio Seque - poesia reunida, Assírio & Alvim, 2006 

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