30.11.20

DÁ LÁ A MÃO

Herói de noites insones
coração não me abandones

neste Outono derramado
não me godas coração
dá-me lá a tua mão

coração tu não me enroles

carcaça foi que está gasta
o check-up diz que basta
tem paciência coração

não me godas não me trames
que estou preso por arames

coração dá lá a mão




                                                   1983


Fernando Assis Pacheco

A MUSA IRREGULAR, Assírio & Alvim, Novembro de 2006

22.11.20

NA PARTE DE TRÁS DO REAL

Na parte de trás do real
largo da estação de San José
vagueava acabrunhado
perto de uma fábrica de tanques
e sentei-me num banco
ao pé da guarita do agulheiro.

Uma flor jazia no feno que jazia
no asfalto da auto-estrada
- a temida flor do feno,
pensei eu. Tinha um caule
negro quebradiço e uma
corola de picos sujos
amarelados - picos longos como
os da coroa de Jesus -, e no centro
um sujo tufo de algodão
como um pincel de barba usado
guardado no meio de coisas velhas
na garage há mais de um ano.

Flor, flor amarela, e
flor da indústria também,
flor forte agreste e feia,
mas flor de qualquer modo,
com a forma da grande rosa
amarela do teu cérebro!
Esta é a que é a flor do Mundo.

       (Do volume Howl and other poems)

Allen Ginsberg


UIVO (e outros poemas), Selecção e tradução: José Palla e Carmo, Publicações Dom Quixote, 1973

18.11.20

Ruínas

Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.


Manuel António Pina


COMO SE DESENHA UMA CASA, Assírio & Alvim, Outubro 2011

13.11.20

RETRATO

Quando menino encompridava rios.
Andava devagar e escuro - meio formado em
silêncio.
Queria ser a voz em que uma pedra fale.
Paisagens vadiavam no seu olho.
Seus cantos eram cheios de nascentes.
Pregava-se nas coisas quanto aromas.

Manoel de Barros


Compêndio para Uso dos Pássaros, Poesia Reunida 1937-2004, edições Quasi , Junho de 2007

9.11.20

O veneno existe ao meu lado

O veneno existe ao meu lado
diz-me que é feliz
subitamente tira a mascarilha.
Canta na sua voz rouca
o barroco ou a essência de um cometa
de infinitas mutações.

Palavras incandescentes
que deixo à guarda dos teus silêncios
logo ali lançam raízes
na primavera
florescem em mil bocas sequiosas.

Sete óvulos
passaram por este leito
tinto de sangue
e de vinho.

Mas quando a noite por fim me visita
vem exausta.

Então olho-te como a luz me olha
como uma ininterrupta jogada com o tinteiro seco
como o momento preciso
em que o espelho encontra a árvore,
perdida no labirinto.


                                                                                              Áfricas 60


Artur do Cruzeiro Seixas


Obra poética - I [Organização de Isabel Meyrelles], Porto Editora: Junho de 2020

5.11.20

CAÇA ÀS BRUXAS

Blusa de decote grande, saia
azul comprida, sandálias pretas,
anda por aqui perto, voando
de ramo para ramo com
asas incansáveis, reservando
bilhetes de comboio, assinando
um contrato, pagando contas.
Melhor deixar poemas inacabados,
interrompidos a meio, num país
onde uma mulher pode ser morta
porque um boato assim o quis.


*

WITCH HUNT


In slutty, long blue
skirt, black floaters, she's
somewhere around, flitting
from branch to branch on
quicksilver wings, booking
rail tickets, signing a lease,
paying bills. Best to leave
poems unfinished, aborted
midway, in a country
where a woman can be killed
because a rumour willed it.


Arvind Krishna Mehrotra

ASSINATURA DE  ZAYN-UL-DIN, Tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Edição Busílis, setembro de 2020

4.11.20

VAN GOGH, MILHEIRAL COM COTOVIA

Mais do que pintor
ele queria ser poeta,

assim, ao tentar
pintar o barulho

da cotovia a ascender
direita ao céu

sobre o milheiral,
Van Gogh pintou a cotovia.


*


VAN GOGH, CORNFIELD WITH LARK


He wanted to be a poet,
more than a painter,

so when van Gogh tried
to paint the sound

of the lark as it ascended
into the sky

above the cornfield,
he painted the lark.


J. R. Solonche

UM PEQUENO LIVRO AZUL, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, Edição Busílis, outubro 2020