28.10.20

MOVIMENTO

Viajo para fora do meu corpo, e dentro de mim há continentes
que não conheço. O meu corpo
é um eterno movimento no exterior de si.
Não pergunto: De onde? Ou onde estavas? Pergunto, para
                                                                     [onde vou?
A areia olha-me e transforma-me em areia,
e a água olha-me e irmana-me com ela.

Na verdade, não há nada para obscurecer a não ser a memória.

Adonis


O Arco-Íris do Instante - Antologia Poética, Introdução, selecção e tradução de Nuno Júdice, Publicações Dom Quixote, Outubro de 2016

26.10.20

[Fogacho]

Pediu-me lume e acendeu a noite: rumor ardente.

Ricardo Álvaro


de TRÊS HAIKUS IRREGULARES


Telhados de Vidro, N.º 23 . Novembro. 2018, Editora Averno, Lisboa

23.10.20

[As pessoas]

As pessoas
e as fotografias das pessoas
envelhecem de forma diferente.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues


Turquesa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, dezembro de 2019

22.10.20

Instruções para engolir a fúria

Na
hipótese de precisares de engolir a fúria
utiliza um copo esquinado no qual
(acidentalmente)
possas dilacerar o lábio. Não te ocorra rejeitar
a primeira água da torneira essa
que habitualmente vem
turva e
enferrujada. Coloca uma dose de raiva (ou
outro genérico da fúria)
na parte
posterior da garganta
aí mesmo onde pressintas maior
desconforto ao
engolir. Reconhece (ainda quente) a cólera
(o globo
da náusea) e deglute de uma só vez
sangue ferrugem e ira até
te subir à boca alguma invectiva impoluta
(por exemplo:)
«Filhos da puta!»

João Luís Barreto Guimarães


movimento, Quetzal Editores, Lisboa,  Outubro de 2020




19.10.20

FORMA, SÓ FORMA

Brincarei ainda na infância
lembrando-me agora?
E que recordação
me pensa a esta hora?

O que sou passou
pela minha existência,
tenho uma presença
mas já lá não estou:

sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.

E aí repousa
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo.

Manuel António Pina


POESIA REUNIDA (1974-2001), Assírio & Alvim, 2001

18.10.20

tenho um cacto para cuidar

tenho um cacto para cuidar
regá-lo de duas em duas semanas, dar-lhe sol
ser-lhe deserto.


Helder Magalhães


Nunca estiveste aqui, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Julho de 2020

17.10.20

[Digo amanhã]

Digo amanhã
como se tivesse a certeza de que amanhã estou vivo




Pode ser esta a hora
de um prodígio
ou de uma sombra funesta


António Ramos Rosa


Em torno do imponderável, Editora Licorne, Outubro de MMXII

16.10.20

[pássaros novos como maçãs verdes]

pássaros novos como maçãs verdes
desconhecem ainda
a primitiva arte do silêncio.
outra mulher que vem de maio
diz: a crueldade dos gatos por estes dias
é pouco menos que infinita.


Francisco Duarte Mangas


primavera audaz cheia de devir, Edições Húmus, Setembro de 2020, Vila Nova de Famalicão

10.10.20

[Esta música, ouves?]



Esta música, ouves?

sabe que
quando nos separamos

- tu seguras uma ponta,
eu seguro outra -

as coisas do mundo
tocam o cordel
da nossa distância.

Vasco Gato


Um Passo Sobre a Terra, fotografias de Vitorino Coragem, Língua Morta, Setembro de 2018

1.10.20

[Que não seja contemplado com o prémio]

Que não seja contemplado com o prémio,
que jamais saia da tômbola,
devidamente ordenado e cantado,
o três oito e setenta e cinco
que o meu avô e antes o pai dele compravam
numa tabacaria ao Largo de São Paulo
e jamais lhes saiu. E à cautela
tapo os olhos com a cautela. E peço
que saia outro número, a outro
o número certo, nem à terminação aspiro.
E que me perdoe os pecados.
Agora e na hora da minha sorte.


José Ricardo Nunes


TRÊS OITO E SETENTA E CINCO (2007-2013), Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2015