29.6.15

Duas

Duas moedas na mão
e um dicionário grego

Francisco Ruiz Udiel

Equipagem para descer ao Inferno, colhido em Notícias do Bloqueio

21.6.15

Ofício

Ofício de verão -
a sede abrasa o canto
insurrecto das cigarras 

© Domingos da Mota

10.6.15

[Eu cantei já, e agora vou chorando]

Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta quando,
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

Luís de Camões

Sonetos de Luís de Camões escolhidos por Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Lisboa, Julho 2000

9.6.15

HERÓICAS

VIII

          (Sim, no século XX ainda se saqueiam 
              cidades.  E  nos  séculos  XXI,  e XXII
              e  XXIII...)


Depois do saque
violaram a rapariga da sombra nua!

Ah! tenho vergonha do sol e da lua.
Vergonha das flores de sangue a chorar
(porque nem todo o orvalho cai do Ar).
Vergonha da sombra a seguir-me no chão
de rastos, como um bicho de solidão...
Vergonha das nuvens, das pedras que piso,
dos olhos das crianças a voarem de riso,
dos soluços das mães
(o pão que elas comem)
e dos uivos dos cães
na noite medonha
do fuzilamento
à luz dos archotes
-- com a sombra a tremer
no muro do vento.

(Mas o pior é que o Homem
tanto sujou a morte
que até tenho vergonha
de morrer.)

José Gomes Ferreira

POESIA - I, Portugália Editora, Lisboa, Outubro de 1969