26.4.24

AVENIDA DA LIBERDADE

Embora nunca tenha descido
a pé a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
todos os anos desço a pé
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
segurando um cartaz que
só os cegos conseguem ler
gritando palavras de ordem
que só os surdos conseguem ouvir
Embora nunca tenha descido
a pé a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
todos os anos desço a pé
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
ou é a avenida que desce em mim
ou a liberdade que desce a avenida
que há em mim
Continuarei a descer a pé
todos os anos
a Avenida da Liberdade
no dia 25 de Abril
mesmo que não haja avenida
mesmo que eu já não esteja
nesta vida


Jorge Sousa Braga

in https://facebook.com/jorge.s.braga - 25 de Abril de 2024

23.4.24

ABRIL - OPUS 25

O dia preservado na memória,
o dia inicial inteiro e limpo,
matriz da liberdade onde a história
radica a liberdade que ora sinto,

está de braços abertos ao futuro
(por muito que o presente seja turvo
e torvo,
vendo que o ameaça).

A liberdade livre continua
a encher as praças e as ruas
contra o ódio e o medo -
sem mordaças.

Fevereiro de 2024 (inédito)

(verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, em itálico)

Domingos da Mota

SEMPRE - poemas para assinalar os cinquenta anos do 25 de Abril, edição da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Edições Afrontamento, Lda., Abril de dois mil e vinte e quatro.

20.4.24

NUMA FRONTE AUSENTE



Terra e noite,
as mãos escavam.
Insistem e desfazem-se
numa fronte ausente.

Na cabeça subsistem
algumas palavras inúteis.

A mão devagar traça
     - vai traçar -
uma rede de sinais de que dependo.
A luz descobre o corpo.

Algumas palavras a mais desaparecem.
Neste instante
a pedra é nua.

António Ramos Rosa


A MÃO DE ÁGUA E A MÃO DE FOGO, Antologia Poética, Selecção e Organização de António Ramos Rosa, Posfácio de Maria Irene Ramalho Sousa Santos, «Fora de Texto», Coop. Editorial de Coimbra, CRL, Coimbra, 1987

16.4.24

Moscas

As moscas mudam, e o mau cheiro é tanto
que tresanda a mil léguas de distância:
se o risco de fedor não causa espanto,
olhando a ambição, vendo a arrogância
das moscas que voltejam em redor
do pote e do poder, fica a noção
de ser a impostura, sem pudor,
o germe da falaz propagação.
As moscas vão mudando e a picardia
contamina o ar que se respira
e alimenta bem mais do que soía
a ameaça diária que transpira
por sob o fingimento, cuja insídia
respalda a avidez da moscaria.


© Domingos da Mota

9.4.24

VAN GOGH

Devora-me a sede de infinito.
Que vou fazer? Como resolvê-la?
Decido: saio para a noite e fito
o espaço nu, a luz duma estrela.

Eugénio Lisboa

O Ilimitável Oceano (Algumas Observações), Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, Março de 2001

8.4.24

2.

Alivia o trabalho,
aligeira as palavras.
De quando em vez
dá-lhes sol e água.

Julgas-te para durar?

Ninguém ganha a vida
senão gastando
o que dela sobra.

O mais que fica
são passados em catadupa
sem nome nem morada.

Henrique Manuel Bento Fialho


De Má Condição, Pinturas: Maria João Lopes Fernandes, Composição: Pedro Serpa, Março de 2024:59

4.4.24

POETA JÁ NÃO SOU

Poeta já não sou, se um dia o fui.
Tornei-me opaco, agreste, perdi norte.
O verbo estaca. Mexe, mas não flui
Como fluía dantes, nédio e forte.

Eu sei que não devia assim queixar-me.
O tempo vai e volta, e acaso um dia,
Buscando devaneio e algum charme,
O verbo ganhe frémito e folia.

É isto: tão queridos, sem vergonha,
Os poetas mentem, troçam, manipulam,
Não há lei que bom senso lhes imponha.

Prometo não voltar a inquietar-vos.
E enquanto o sangue e a linfa em mim circulam,
Impedirei que façam de vós parvos.


Fernando Venâncio

(colhido, com a devida autorização, na sua página do Facebook)

31.3.24

[Cerejeiras em flor]

Cerejeiras em flor -
E no entanto
Sofrimento e corrupção


Issa Kobayashi

PRIMEIRA NEVE [haikus], versões de Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim, Lisboa, Novembro de 2002

23.3.24

Pegada de carbono

Sei que não hão de restar
sequer os dentes
nas cinzas do futuro.

Talvez este poema
faça eco
num beco sem saída.

Nem todos os fantasmas
são entidades translúcidas.
Alguns são antes de tudo
a matéria escura da linguagem.


Nuno F. Silva


Sol Subterrâneo, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2024

17.3.24

FRAGMENTOS

1

Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, e dura, te pode atingir.

2

Algo de visível perpassa
nos limites do ser.

3

De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.

4

Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.

5

(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim...)

6

O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.

7

No último fragmento, fixa
o efémero, e repousa.


Nuno Júdice


50 Anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022), Publicações Dom Quixote, Março de 2022

16.3.24

DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA

Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.


Natália Correia


Antologia Poética [
in Poemas] Organização e Prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Julho de 2002

11.3.24

O ar

O ar tornou-se mais espesso,
mais pesado, mais sombrio
(quase virado do avesso)
e com um cheiro a bafio.

O risco de empestar
tudo o que mexe em redor
é real, e o fedor
será pior, bem pior.


© Domingos da Mota

5.3.24

RAIZ SEMPRE PRESENTE

Raiz sempre presente, e do futuro
mistério aventurado    mal ou bem
e sopro imaculado p'la manhã,
da árvore pendido um doce fruto

que derramado embora a ela     puro
volta de novo, e que é voz e silêncio
dum canto renovado    permanente
que para ser existirá sem música,

zumbido duma brisa acolhedora,
corrente d'água límpida    a fluir
até ser a miragem do meu sonho,

princípio da beleza    mavioso,
luz radiante em raios onde põe
a certeza de nunca ela o cobrir.


António Salvado

Ecos do Trajecto seguido de Passo a Passo, Edição Ricardo Neves Produção Lda., - A.23 Edições, 2014

28.2.24

sátira de John Kaspar a um poeta de mau porte

(sec. XIII)


a flauta do cego
o brilho da bota
o piano de cauda
o ás da batota

um galo a fingir
de crista de prata
e o pombo a grunhir
sem selo na carta

fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto

o Silva das lérias
no bairro galante
é um porco em férias,
um significante
da casta devassa
um pulha tratante
que na greve dos bardos
vestiu de amarelo
e roubou um pedinte
de foice e martelo

de chave encravada
faz soneto frouxo
de sapata rota
é peixe sem lota
é o prego da bota

fugi dos poetas
de patas de chumbo
fugi da má rima
um morto é defunto


António Ferra

lengas e narrativas, Edição Húmus, Vila Nova de Famalicão, Junho de 2022

12.2.24

POEMAS QUOTIDIANOS



81


Onde vamos livres

Onde vamos presos

correr como rios
durar
como pedras

e lançar raízes


António Reis

Poemas Quotidianos, Edições Tinta-da-china, Lda., Lisboa, Julho de 2017

4.2.24

INSULTO AO POEMA

O poema não é lindo
como tantas vezes acham alguns ingénuos
e maus leitores. Pode ser dúvida dor ou disfarce
e tantas outras coisas começadas por d como
devastação desistência despedida ou
por r como raiva rasura ressurreição. Lembro
sempre os versos de Ana Hatherly
E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta.

Inês Lourenço

in Inês Lourenço, As Palavras Beijam Sem Carga Viral, pág. 6,
e Andreia C. Faria, Este Fresco Sanatório para o Sangue,
Editor Câmara Municipal do Porto, Porto, agosto de 2021

19.1.24

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.


Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Edição 1.ª, Setembro, 2001, Editora Fundação Eugénio de Andrade, Porto

17.1.24

PARAÍSO E INFERNO

segundo a teoria
de todos os Santos
Padres, seja Tomás
seja Agostinho, seja
qual for, ganhar o
Paraíso obrigará a
perder tudo o mais,
inclusive raspadinhas...
ganhar o paraíso...
mas como é ele?

não tem nómadas,
só residentes fixos,
como os beatos e santos
e recém-canonizados,
impedidos de alugar
e pior mesmo subalugar,
porque assim é perfeito,
perfeito, para alguns
papas até, e com razão,
mais que perfeito,
ou seja, já foi, era,
não recebe mais, para
já ele acabou, ganhá-lo
é pois ganhar o que na
santa teoria existiu,
mas deu-se-lhe fim:
na prática, teve fim,
eramos tantos a dizer
in eo spero, acabou,
está cheio, mais nada,
acabou, foi, não há.

calma!
os matemáticos
ainda
não concluíram
todos os cálculos.

consegue-se?

do inferno
já conseguiram.


Alberto Pimenta

in
NERVO / 20 Janeiro a Abril de 2024, Editora: Maria F Roldão

9.1.24

Ode ao bolor

                  ad summam


Cheiram a mofo, a bafio,
os que de rosto sombrio
nos prometem o futuro.
Um futuro promissor?

Como se o cheiro a bolor
melhorasse o pão duro.
Fosse mole o pão doutrora,
(mais fresco que o pão d'agora)

e talvez muitos descrentes,
perante as suas promessas,
não as lessem às avessas
e não mostrassem os dentes.

Lembrado do pão amargo
que o diabo amassou,
quem dera fiquem ao largo,
pois com eles eu não vou.


© Domingos da Mota