26.2.20

A NOITE NOS ACENDE MOVIMENTOS

A noite nos acende movimentos
luminosos. E ampla se diria
ou paz, se não mover-nos
abrisse dentro da brisa.
Mas mesmo que o silêncio
nos alongue a memória e as axilas
respirem o que vemos,
a custo vemos crescerem às pupilas
os vasos de irem vendo
a inclinação das coisas esquecidas.

Fernando Echevarría

POESIA, 1956-1979, Edições Afrontamento, 1989

23.2.20

PAPOILAS

                                             A Izet Sarajlic


Sobre o antigo campo de batalha
onde morreram milhares de rapazes
volta a crescer o trigo, salpicado
aqui e ali por ardentes papoilas.

E dois apaixonados, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que então aqui morreram,
fazem hoje amor entre as searas.

Derrubam o trigo. Esmagam as papoilas.


*

AMAPOLAS

                                                 A Izet Sarajlic


Sobre el antiguo campo de batalla
donde murieron miles de muchachos
vuelve a crecer el trigo, salpicado
aquí y allá de ardientes amapolas.

Y dos enamorados, que tendrán
más o menos la edad de los soldados
que aquí entonces murieron,
hoy hacen el amor en el sembrado.

Tumban el trigo. Aplastan amapolas.

Juan Vicente Piqueras

Instruções para Atravessar o Desertopoemas escolhidos, tradução João Duarte Rodrigues e Manuel Alberto Valente, Porto Editora, Fevereiro de 2019

22.2.20

Pelo sim pelo não

Retiro o que não disse.
Não vá o diabo dizê-las.

Paulo José Borges

Um ócio todo estendido, Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Dezembro de 2019

20.2.20

SE BEM QUE SEJA OUTONO

Se bem que seja outono
e véspera d'inverno,
eu canto a primavera,
nela o meu estro ponho,

que és tu, ilimitada
tão constante presença,
o ar purificado
que sempre de ti vem.

E ali estamos ardendo
sempre desencontrados,
num benéfico espaço
com tão desiguais tempos.

António Salvado

ECOS DO TRAJECTO seguido de PASSO A PASSO, Edição Ricardo Neves Produção, Lda. - A.23 Edições, 2014

19.2.20

DESENCONTRO

Que língua estrangeira é esta
que me roça a flor do ouvido,
um vozear sem sentido
que nenhum sentido empresta?
Sussurro de vago tom,
reminiscência de esfinge,
voz que se julga, ou se finge
sentido, e é apenas som.

Contracenamos por gestos,
por sorrisos, por olhares,
rodeios protocolares,
cumprimentos indigestos,
firmes apertos de mão,
passeios de braço dado,
mas por som articulado,
por palavras, isso não.
Antes morrer atolado
na mais negra solidão.

António Gedeão

POESIAS COMPLETAS (1956-1967), Portugália Editora, Lisboa, Janeiro de 1971

10.2.20

Dado o caso

Escolhe entre os erros
que tens à tua disposição,
mas escolhe certo.
Talvez seja errado
fazer o que está certo
no momento errado,
ou esteja certo
fazer o que é errado
no momento certo?
Um passo ao lado,
impossível de corrigir.
O erro certo,
uma vez desaproveitado,
não é fácil que volte a surgir.

*

Gegebenenfalls

Wähle unter den Fehlern,
die dir gegeben sind,
aber wähle richtig.
Vielleicht ist es falsch,
das Richtige
im falschen Moment
zu tun, oder richtig,
das Falsche
im richtigen Augenblick?
Ein Schritt daneben,
nicht  wieder gut zu machen.
Der richtige Fehler,
einmal versäumt,
kehrt nicht so leicht wieder.

Hans Magnus Enzensberger

66 poemas escolhidos e traduzidos por Alberto Pimenta, edições do Saguão, Outubro de 2019

8.2.20

GOMES LEAL, II

(Grito de Gomes Leal no céu:)

"Cansado de dormir no basalto,
morri e meteram-me numa nuvem de elevador.
E agora cá estou no céu alto
com uma estrela ao peito em vez de flor.

Mas qualquer dia dou um salto.
(Ou peço a um anjo que me transporte
para não quebrar as pernas.)

Estou farto de céu e quero mundo! Quero morte!
Quero dor! Quero tabernas!"

José Gomes Ferreira

Eugénio de Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Campo das Letras - Editores, S. A., Porto, Novembro de 1999

2.2.20

Um mau exemplo

Nunca quis chegar a sítio algum
nem tampouco a paisagem
me interessou particularmente.

Um pequeno bar de bairro
com uma mesa
de onde ver o mundo apagar
e acender
- debaixo de chuva -
as luzes nos passeios,
chegou-me para ser quase feliz.

Exilado dentro de mim,
nunca à venda
nem a beijar a mão a ninguém,
arrasto a minha epopeia minúscula
- por umas ruas
que nem sequer são já as minhas ruas -
e vou-me afastando.

*


Un mal ejemplo
Nunca quise llegar a ningún sitio/ ni tampoco me interesó/ especialmente
el paisaje.// Un pequeño bar de barrio/ con una mesa/ desde la que ver
el mundo apagarse/ y encenderse/ - bajo la lluvia -/las farolas en las
aceras,/ me ha bastado para ser casi feliz,// Exiliado en mi interior,/ nunca
en venta/ ni besando la mano de nadie,/ arrastro mi minúscula épica/
- por unas calles/ que ni siquiera son ya mis calles -/ y me voy alejando.

Karmelo C. Iribarren

Estas coisas acontecem sempre de repente, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição do lado esquerdo, Coimbra, Setembro de 2019