20.6.23

Teatro de sombras

Fosse o começo, mas é quase o fim;
e o fim começa quando principia
o lusco-fusco, a meia-luz que o dia
deixa medrar até que a noite em si
derrame a escuridão (o sol deserte
para o lado de lá do oceano),
enquanto deste lado sobe o pano
do teatro de sombras que promete
entrar em cena, sendo o palco o ser
que enche de ilusões o seu vazio
velado pela crença, e ao arrepio
da luz que a razão procure ter
sobre deuses vingativos ou demónios
no altar de incensados unicórnios.



© Domingos da Mota

17.6.23

SOMBRA

Para quê escrever mais?
Por favor não te iludas
no abismo onde cais
as palavras são mudas

Nada quer dizer nada
tudo quer dizer tudo
e há uma porta fechada
a deixar-te hoje mudo

preso ao estranho algoritmo
em que assim te supões
embalado no ritmo
de subtis sensações

quando ao longe imaginas
uma vaga silhueta
entre ruas e esquinas
da cidade secreta

ou uma sombra que passa
e não vês o que seja
ao receber a graça
do que em ti só deseja

a mais última paz
antes do infinito
como um verso que traz
o que nunca foi dito


Fernando Pinto do Amaral

Última Vida, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 2023

12.6.23

SENHORA VERMEER

À senhora Vermeer coube-lhe a sorte
de não caber nos quadros
de Vermeer, seu marido.
Não possuía o traço do anil
ou do ouro
que lhe caíam do regaço
como única declaração de posse
das jóias e do marido
que não era jóia nenhuma
como dizia a criada
que sabia como se cozinhavam as coisas
à rapariga do brinco
que ele pintou para sua desgraça.
A senhora Vermeer não ficou na História da Arte
só na das histéricas lágrimas
e inúteis posses,
desvairada e borratada
na sua pintura.


Ana Paula Inácio


Telhados de Vidro, N.º 11, Novembro 2008
, edição Averno, Lisboa

10.6.23

O tempo acaba o ano, o mês e a hora

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;
O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

Luís de Camões


LÍRICA, Fixação do texto de: Hernâni Cidade, Círculo de Leitores, Lda., Décima Edição, Setembro de 1984