26.3.22

Desarmonia pré-estabelecida

Por cada um que pespega
a garrafa de cerveja na cabeça do tâmil,
um cirurgião nas urgências,
para coser o crânio.
E vice-versa.

Por cada perito de desminagem
pondo em risco a vida,
um negociante de armas.
E vice-versa.

Por cada violador, uma mulher
com a faca de cortar os bifes na mão,
por cada trabalhador da segurança social
um neo-nazi, e por cada um que ganha bem
um inspector de finanças, e para
cada monstro uma doce madonna, e vice-versa.

Ah, tanto que fazer
para cada um de nós:
nem se vê o fim.


Hans Magnus Enzensberger

66 POEMAS, Tradução, notas e posfácio: Alberto Pimenta, Edições Saguão, Outubro de 2019

22.3.22

AS ÚLTIMAS FOLHAS DO OUTONO

A contemplação do fumo, depois de apagar uma vela.

*

A vela chegou ao fim, mas, eu continuo a escrever, â luz
dos olhos do meu gato.

*

Dou, todos os dias, um passeio, para ficar cada vez mais
imóvel
- Do que é que eu tenho medo?
- De Deus, porque, se Ele quiser, pode não existir.

*

No jardim, onde vi p´la primeira vez as tuas mamas,
há uma fonte
com uma mulher esculpida em bronze,
que empunha, com as duas mãos, uma lâmpada apagada.
Quando vi p'la primeira vez as tuas mamas a lâmpada estava acesa.

*

A dois passos do descaminho
o milagre da caligrafia
uma fonte
um largo largo largo largo horizonte.

*

O distúrbio da beleza:
viver encarcerado com as linhas do teu rosto.


António Barahona

NERVO/13   colectivo de poesia   janeiro-abril 2022, Editora Maria F. Roldão

21.3.22

Como comer um dióspiro

Pegas numa faca bem afiada
e cortas o dióspiro em quatro partes
com a ponta da faca abres cada gomo
como se fosse uma pétala da flor de sol
a seguir comes a polpa com uma colher

Cuidado para não te queimares de prazer


Paulo Moreira Lopes


como comer um dióspiro, Edição Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Fevereiro de 2022

20.3.22

OFÍCIO

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira


Gastão Cruz

ESCARPAS, Assírio & Alvim, Fevereiro 2010

14.3.22

FASTO E NEFASTO

Aquele ali parado na manhã de outono
de noite fasta e nefasta deixada atrás das costas
pretende salvar os sonhos no lugar da vida.

No lugar da vida aquele ali parado
alimenta a noite na manhã de outono
e desafia a morte.

Na manhã de outono aquele ali perdido
deixou para trás das costas no lugar da vida
a salvação dos sonhos.

Perdido na manhã no outono da vida
aquele ali tão fasto a salvar os sonhos
alimenta só a nefasta morte.


Armando Silva Carvalho

A SOMBRA DO MAR
, Assírio & Alvim, Julho de 2015

12.3.22

[Afrontar com a mesma calma]

Afrontar com a mesma calma
a casa que se constrói
e o dilúvio que a arrasa?

Flor Campino


27 poemas, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2021

11.3.22

devocionário

húmus


quando é de restos de sol
silêncio e cascas
de tangerina: a poesia
estende raízes
navega
dá ramos e frutos.


Francisco Duarte Mangas

devocionário, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2022

10.3.22

[Um arrepio cruzou o corpo, decidiram envelhecer]

Um arrepio cruzou o corpo, decidiram envelhecer
textualmente, como existência mágica da vida.
Sopa e calamares. E a mesa? Assim, um moleiro
apaixonado se trancou na azenha, dizendo o povo,
empertigado, que o viu chorar de tanta beleza.

José Alves da Costa, Cabo apontador, recusou-se a
matar


Aurelino Costa

amónio, desenhos de Anxo Pastor, Edições Húmus, Fevereiro de 2022, Vila Nova de Famalicão

5.3.22

SILÊNCIOS

A morte sempre ao lado.
Escuto o seu dizer.
Só me oiço.


*


SILENCIOS


La muerte siempre al lado.
Escucho su decir.
Sólo me oigo.


Alejandra Pizarnik


Antologia Poética, Tradução edição em língua portuguesa: ocorreiodosnavios | estratégiascriativas, Porto

4.3.22

MANHÃ DE JUNHO

Talvez, talvez sejam os últimos
dias. Se for assim, são um esplendor.
Apesar dos aviões da Nato despejarem
bombas e bombas no Kosovo, a perfeição
mora neste buraco branco
onde o escarlate
da flor da buganvília sobe ao encontro
da luz fresca da manhã de junho.
A beleza (não há outra palavra
para dizê-lo), a beleza desta manhã
é terrível: persiste, domina -
apesar dos aviões, mesmo com
bombas a cair e crianças a morrer.


Eugénio de Andrade

Os Sulcos da Sede, Edição Fundação Eugénio de Andrade, Setembro, 2001