30.4.22

A SITUAÇÃO FAZ-SE DELICADA

Basta olhar para o sol
Através de um vidro fumado
Para ver que a coisa vai mal;
Ou vocês acham que vai bem?

Eu proponho voltar
Aos carros puxados a cavalo
Ao avião a vapor
Aos televisores de pedra.

Os antigos tinham razão:
É preciso voltar a cozinhar a lenha.


Nicanor Parra

ACHO QUE VOU MORRER DE POESIA, Selecção, tradução, prólogo e notas de Miguel Filipe Mochila, Língua Morta, Outubro de 2019

26.4.22

PHOKYLIDES

Phokylides diz: são velhacos
os de Leros. Não é este
ou aquele, são todos.
Excepto Prokles. E Prokles?
É de Leros.


Phokylides

Poemas da Antologia Grega, versões de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2018

20.4.22

SOB UM QUADRO

Onda de trigo por bandos de corvos invadida.
Azul de que céu? Do de baixo? De cima?
Flecha tardia, desde a alma despedida.
Zumbido mais forte. Ardor mais próximo. Dois mundos.

Paul Celan

Não Sabemos mesmo O Que Importa - Cem Poemas
, Tradução e Posfácio de Gilda Lopes Encarnação, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2014

18.4.22

Breviário da incerteza

A dúvida, senhor,
dai-nos a dúvida, para podermos
questionar e ver melhor.

*

Perante as evidências plantadas,
um grão de cepticismo
nos dai hoje.

*

Ante o rolo compressor
do pensamento unidimensional, que o ponto
de interrogação nos acompanhe.

*

Perante o dogma,
pai e mãe do fanatismo, que a incerteza
rasgue os ares como um relâmpago.

*

Da censura
livrai-nos ora e sempre
e dos seus malefícios culturais.

© Domingos da Mota

12.4.22

ESPERANDO POR MATHIAS FERGUSON MORTO COM O SEU EXÉRCITO

Aquele poema, em que acabei por dizer
que o inverno traria notícias do norte, não resolveu
as minhas dúvidas. Nem a sua conclusão, nem o meu estado
de espírito, me puderam
esclarecer sobre a verdadeira natureza
da profecia; e se bem que hoje, passados muitos dias sobre o fim
do outono, algo me possa dizer que mahias ferguson,
o trombeteiro, tocou a madrugada, não ouço o tropel dos cavalos
nem reconheço, nas cores indecisas do horizonte, as cores
vitoriosas do regimento. O que terá sucedido, entretanto? Que planície
dá guarida aos corpos
dos soldados mortos? Quem, na solidão, terá congeminado
a desgraça para um país, e a dúvida obsessiva
para um poeta, a sul?


Nuno Júdice


50 Anos de Poesia - Antologia Pessoal (1972-2022), Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2022

9.4.22

[Sabedoria de insecto]

Sabedoria de insecto:

chegará o dia em que a morte será
o mais banal de todos os mistérios.


Ricardo Gil Soeiro

Pirilampos - política das sobrevivências, Assírio & Alvim, Fevereiro de 2022

7.4.22

ICEBERG

Espécie em vias de extinção.


João Pedro Mésseder


Estação dos Líquidos, Elefante Editores, Setembro de 2021


2.4.22

O PREÇO DE UM SOLDADO

Em 1938, num artigo sobre outra coisa,
Ezra Pound, que entendia a poesia
como uma ciência hermética
e a economia como uma magia exacta,
o perturbado admirador de Mussolini,
o bricoleur de tradições e exotismos,
o visionário
que naufragou na maré caótica das suas visões,
escreveu, num rapto de lucidez e decência,
o seguinte:
                  «A guerra custa
25.000 dólares por cadáver.
                                         Quero saber
QUEM fica com esses 25.000 dólares.
Esta pergunta parece-me
de criminologia elementar».

Ezra Pound, o pró-fascista retórico,
nunca soube com certeza
quem ficava com esses milhares de dólares,
da mesma forma que não podemos saber
se os beneficiários desse dinheiro fúnebre, ontem e hoje,
conseguem afugentar do repertório dos seus sonhos
os cadáveres anónimos que levam na carteira,
como uma sequência recorrente de mortos sem porquê
que perguntam por quê, enfiados numa carteira.


Felipe Benítez Reyes

OS OSSOS DO MEU DUPLO, TRADUÇÕES DE POESIA, Poemas traduzidos por Diogo Vaz Pinto, Selecção e introdução de Luís Filipe Parrado, Língua Morta, Outubro de 2021