26.4.13

[Agudas apontaste ao alvo escuro]

60.

Agudas apontaste ao alvo escuro
velhas setas azedas, já nem picam,
antes, de vício, rodam no seu furo
onde vermes e ranhos se fabricam.

Deitado assim de costas escarpadas
(costas devidas ao que adeus me deu),
cuspo calado as palavras opadas
que zurro ao ar e não chegam ao céu.

Deitado ainda, já nem sei que pé,
que força ou rasto ainda me sustente;
persisto e visto a capa que relê

as palavras antigas do presente,
as palavras, as figas: rodapé
do amor a voar, além, ausente.

Pedro Tamen

Rua de Nenhures, Publicações Dom Quixote, Lisboa,  Março de 2013

25.4.13

CIDADE DOS OUTROS

Uma terrível atroz imensa
Desonestidade
Cobre a cidade

Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios

O mal procura o mal e ambos se entendem
Compram e vendem

E com um sabor a coisa morta
A cidade dos outros
Bate à nossa porta

Sophia de Mello Breyner

GRADES, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1970

20.4.13

Pastoral

Sobre silva, sarça-ardente
de desmedida altivez, 
apenas

e tão-somente turificado
expoente de pesada 
pequenez.


© Domingos da Mota


18.4.13

Genealogia

Sabia de onde vinha.
Não pretendia escondê-lo. Do pai e da mãe,
uma mesma herança de fome e de ostentação.
Causa, consequência,
agredido, agressor,
um igual legado de ignorância e de escravatura,
de poder e de impotência.
Diria de onde vinha,
e que quando confrontado com a sua própria violência
o tempo acaba sempre por se vingar.
Mais raramente a história.

Madalena de Castro Campos

O FARDO DO HOMEM BRANCO, Edição Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Março de 2013

16.4.13

O rombo

Basta, meu velho,
basta de ser
verbo-de-encher.

Estes diabos
são insolentes,
alçam os rabos,
mostram os dentes
e redesenham
novos pacotes,
novos embrulhos
excruciantes,
piores que Judas
Iscariotes.

Reviram itens,
pontos e vírgulas
e portarias,
lavram despachos
que nem Calígula
se atreveria.

Fazem das suas:
e grassa a fome,
a fome negra
que enche as ruas,
e tudo em nome
do que os cega.

Basta, meu velho.

Mas se duvidas,
como Tomé,
pega no dedo,
toca na ferida,
e vê o rombo
que tens, José.

© Domingos da Mota


10.4.13

Bode expiatório

Olha, meu velho,
vê o aparato,
fazem de ti
gato-sapato
com o aperto
(obrigatório?)
de que és o bode
expiatório.

Repara bem
nas ameaças
destes fedelhos,
e nas trapaças.
Mudam as leis,
trocam as normas,
dão-te dois reis
de mel coado,
baixam pensões,
esbulham reformas,
tributam mais
taxas, impostos,
tiram-te a pele,
esburgam-te os ossos.

Falam de peste,
peste grisalha,
e desinvestem
em quem trabalha,
o desemprego
desenfreado,
desassossego
de cabo a rabo;
e tu o fardo,
ora a velhice,
mais um agravo
sobre a mesmice.
Já não respeitam
cabelos brancos,
surdos e cegos,
mudos e mancos.

Abrem as covas.
Buscam heranças
com acrimónia,
letras, livranças,
pratas, baixelas
e dentaduras
novas e velhas,
rendas futuras,
acções cotadas
e promissórias,
penduricalhos
e vanglórias.

Vê a perfídia
dos paus-mandados
que manipulam
factos e dados:
usam falácias
e silogismos
para cevar
os egoísmos.

Ora, meu velho,
vê lá se acordas,
se te precatas
perante as hordas
de jovens turcos,
velhas raposas,
muitos eunucos
que te destratam
e amofinam
e desacatam
e mortificam,
vê lá se ousas
erguer a voz,
bater o pé
e dizer não,
não à má-fé
do vil projecto,
plano atroz
que te espezinha
e faz de ti
um objecto
que desarrima:
mastins da usura,
com insolência
chocam o ovo
da ditadura,
da prepotência.

Basta, meu velho,
basta de medo
e de vingança.
Antes que tarde,
responde ao vezo
da contradança.

© Domingos da Mota



6.4.13

RESPONSO



Com um  tiro no artelho,
viva o velho!

Com um tiro no abdome,
passa-te  a fome!

Com um tiro no nariz,
«Que é que ele diz?».

Com um tiro no rabo,
podes ir de rabo a cabo!

Com um tiro na cedilha,
terá de ser doutro a filha...

Com um tiro no coração,
oh que sono e que colchão!

Alexandre O'Neill


POESIAS COMPLETAS, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007





3.4.13

antigos

os amigos puros
como livros eruditos
que ao ser abertos
nos perseguem novos

abertos à faca
de rasgar caminhos
novos pois relidos
pelos passos paralelos

puros porque a faca
nunca trai cobarde
o acaso dos reencontros
e dos regressos

os velhos amigos
chegam sempre a tempo
e ao mesmo tempo
aos seus destinos

a lacre em sangue
olho lince desalmado
sempre fieis ao futuro
amigos longe ao lado

Joaquim Castro Caldas

MÁGOA DAS PEDRAS, Deriva Editores, Porto, Janeiro 2008

1.4.13

DIFÍCIL MEDICINA

Ao curar doenças é preciso usar venenos
uma palavra não quando o sim está na cama.
Pequenas concessões enfraquecem a voz toda
e se um poeta canta esperamos mais um ovo.

Bom para gemadas. Mas há que juntar veneno.
Beba-se a mistura como um álcool que nos queima
e vai matar da cura. O não é como o álcool
em verdade envenenante - o século tresanda!

Basta de alcoólicos. Queremo-nos curados
bons a olhar de novo para a esfinge interrogante.
Havemos de beber outra vez de um vinho puro
nós e as palavras - que elas amam não saber

de sins e de gemadas, de nãos e de venenos.

Carlos Poças Falcão

A NUVEM, Edição: Pedra Formosa, Guimarães, Outubro de 2000