30.8.20

«UMA CHAMA NÃO CHAMA A MESMA CHAMA...»

uma chama não chama a mesma chama
há uma outra chama que se chama
em cada chama que chama pela chama
que a chama no chamar se incendeia

um nome não nome o mesmo nome
um outro nome nome que nomeia
em cada nome o meio pelo nome
que o nome no nome se incendeia

uma chama um nome a mesma chama
há um outro nome que se chama
em cada nome o chama pelo nome
que a chama no nome se incendeia

um nome uma chama o mesmo nome
há uma outra chama que nomeia
em cada chama o nome que se chama
o nome que na chama se incendeia

                             (Versus-in-Versus)

E. M. de Melo e Castro

LÍRICAS PORTUGUESAS, 4.ª Série, Selecção, prefácio e notas de António Ramos Rosa, Portugália Editora, Lisboa, Outubro de 1969

22.8.20

Mais nada

No início
queres mudar
o mundo,
conformas-te
com deixar  de fumar
no final.

Mais nada.

Tão cómico assim
e tão trágico.

*

No hay más
Al principio/ quieres cambiar/ el mundo,/ y al final/ te conformas/ com dejar el tabaco.// No hay más.// Así de cómico,/ y así de trágico.

Karmelo C. Iribarren

Estas coisa acontecem sempre de repente, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, edição do lado esquerdo, Coimbra, Setembro de 2019

21.8.20

UMA LISBOA REMANCHADA

APROVEITANDO UMA ABERTA

«Ó virgens que passais ao sol-poente»
com esses filhos-família,
pensai, primeiro, na mobília,
que é mais prudente.

Sim, que essa qualidade,
tão bem reconstituída,
nem sempre, revirgens, há-de
proporcionar-vos a vida

que levais.
Se um tolo nunca vem só,
quando não vem, não vem mais
ou vem, digamos, por dó...

E o dó dói como um soco,
até mesmo quando parte
de um tolo que a vossa arte
promoveu de tolo a louco.

Eu quando digo mobília,
digo lar, digo família
e aquela espiada fresta,
aberta, patente, honesta,

retrato oval da virtude,
consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste.

Assim, sim, virgens sensatas!
(Nos telhados só as gatas...)
Pensai antes na mobília,
honestas mães de família,
e aceitai respeitos mil
do vosso
              Alexandre O'Neill!

Alexandre O'Neill

POESIAS COMPLETAS [Poemas com Endereço]  Assírio & Alvim, Maio de 2007

20.8.20

... é do tempo que falamos

... é do tempo que falamos
quando o céu está ausente
- o tempo -
Grifo e Serpente.

Quando ele passa
usamos esta água que
lucidíssima
te abraça.

                                                      Áfricas 61

Artur do Cruzeiro Seixas

Obra poética - I Organização de Isabel Meyrelles, Porto Editora, Junho de 2020

17.8.20

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummod de Andrade

Antologia Poética, Publicações Dom Quixote, 2015

16.8.20

A LEÃO XIII

Ó Padre Santo! Meu Irmão! Ó meu amigo
Do velho mundo antigo
- Dá-me consolação, e prova-me que há Deus;
Resolve-me a equação estrelada dos céus;
Admite-me ao Conselho amigo dos Cardeais:
Deixa-me ler, também, na letra dos missais!
Muito que te contar! Não conheces o mundo?
Nunca desceste, Padre!, a esse poço profundo?
Metido nessa cela ideal do Vaticano,
Há quanto tempo tu não vês o Oceano?
Nunca viste um boldel! Sabes o que é a desgraça?
Ouviste, acaso, o "pschut"! delas, a quem passa?
Sabes que existem, dize, as casas de penhores?
No teu palácio, há, porventura, amores?
Viste passar, acaso um bêbado, na rua?
Já viste o efeito que na lama imprime a lua?
Ouve: tiveste já torturas de dinheiro?
Já viste um brigue no mar? Já viste um marinheiro?
Que ideia fazes tu das crenças do rapazes?
Já viste alguém novo, Padre? Que ideia fazes,
Santo Leão!, do Boulevard dos italianos?
Recordas com saudade os teus vinte e três anos?
Ó Leão XIII! Ó Poeta, essa é a minha idade!
Como tu vês, estou na flor da mocidade!,
Ainda não contei metade de cinquenta.
Começa-me a nascer a barba, o mundo tenta
A minha alma: ah, como é lindo esse Demónio!
Nasci em Portugal! Chamo-me António;
Tenho sido um infeliz...
Um vento de desgraça atirou-me a Paris.
Em pequenino, Padre, ajoelhado na cama,
A erguer as mãos a Deus, ensinou-me a minha ama;
Sabia de cor mil e trezentas orações,
Mas tudo esqueci no mundo aos trambolhões...
Nossa Senhora te dirá se isto é assim!

- O que há-de ser de mim?

António Nobre

ANTOLOGIA PESSOAL DA POESIA PORTUGUESA, EUGÉNIO DE ANDRADE, Campo das Letras - Editores, S.A., 1999

15.8.20

MONÓLOGO DE UM CRENTE EM CRISE DE LUCIDEZ

Senhor, nós que tivemos
carros velozes,
comprados aos teutões do rio Meno;

nós, os nautas, que andámos
a cavalgar a luz em gigabites
nos ecrãs fabricados
pelos netos de Mao Tse-Tung;

nós, os sem estatuto,
que deixámos a Great Corporation
fingir facilitar-nos
em prestações suaves
a casa que comprámos
com o nosso trabalho de trinta anos;

nós, que nos apurámos
em civilizações contínuas
e vimos o rosto à mais pequena célula,
e traçámos estradas no Universo,
medindo a chegada aos astros
em milhões de anos-luz,
matematicamente certa,
hipoteticamente possível no futuro,
para nossa alegria e glória humana,

nós dizemos, Senhor,

são íngremes os teus caminhos,
pois devoraste quanto amealhámos
e fizeste-nos servos sem Espártaco,
e  deste a água, o vento, povos e países
à Great Corporation,
e entregaste-lhe o nosso sangue
e as ervas que apurámos contra a morte,
e preparas agora as trevas
em dias finais de sol,

responde, deveremos escutar
a pregação de Paulo
ou a palavra secreta  do teu filho
que os zelotas baniram?

Nuno Dempster

VARIAÇÕES DA PERDA, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Junho de 2020

13.8.20

O GALO CANTOU TRÊS VEZES

O galo cantou três vezes
e ninguém me negou.

Cristo não sofreu um enxovalho assim.
Ele tinha Pedro, um grande negador,
não precisou de passar por esta coisa chata
de ninguém nos negar, mesmo tendo o galo
cantado três vezes.

Enfim, c'est la vie. Mas cante o galo
ainda uma quarta ou quinta vez,
que eu - que remédio - lá me irei negando
pelos meus próprios meios.

Que os tempos não vão para exigências
e em tempo de espingardas
não se limpam guerras.

A. M. Pires Cabral

Frentes de Fogo, Edições Tinta-da-China, Lda., Novembro de 2019

12.8.20

FACTO

Tenho aprendido muito convosco, ó amigos homens,
a gostar de aventuras e, sobretudo,
mulheres ao alto, ao lado, ao fundo
e, adormecido, sonhar fora do mundo.

7/12/76

Ruy Cinatti

56 Poemas, Relógio D'Água, 1992

10.8.20

PROVÉRBIO

A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra.

Carlos de Oliveira

A Leve Têmpera do Vento, Antologia Poética, Selecção e nota de João Pedro Mésseder, Quasi Edições, Novembro de 2001

9.8.20

homenagem a cesário verde

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny

Pena Capital, Assírio & Alvim, Março, 1999

8.8.20

POEMA DO BURGUÊS NA PRAIA

Há mãos de mãe sobre a seara
que às três da tarde ondula no seu gesto
Já tudo tem um rosto
e o amor de que ele gasta resto

O mar faz-lhe lembrar um cego horizontal
de olhar embaciado

Veio de lisboa para o seu passado
está de acordo com tudo

Ruy Belo

TODOS OS POEMAS I, Assírio & Alvim, Outubro 2004

6.8.20

PALAVRAS

Nenhum ramo
é seguro. Frágeis
são as palavras.

Albano Martins

O MESMO NOME, Campo das Letras, Editores, S. A. - Porto, Outubro de 1996

2.8.20

EM VENDO A CORJA TOMAR O FREIO

Em vendo a corja tomar o freio
Vender o jogo, coitadinha
Sinto vontade de ir em passeio
Ir à vidinha

Não é cordato ser pessimista
Quem não se lembra dos galarós?
Esta tendência para ser fadista
Vem d'outros tempos, d'outros avós

Tu Nicolau Tolentino sabes
Quantos peraltas são já ministros?
Quantos mendigos chegam a frades?
Quantos são Cristos?

Isto do tempo de antena é moda
Que vem do fundo da tradição
Quando o tirano de Santa Comba
Fazia tudo pela Nação

E as calinadas do Pai Tomás
Dignificando o Pátrio idioma?
Meus rapazinhos, quem é capaz?
Quem faz a soma?

Este chulismo de quintarola
Esta viagem p'rà CÊÉÉ
E o populacho todo pachola
Olarilolé

Muitos mais chulos nos vão rondando
Vai sendo tempo qu'rido zarolho
Pega no arrocho de quando em quando
Prepara o molho

José Afonso

Textos e canções, Organização: Elfriede Engelmayer, 3.ª edição revista, Relógio D'Água Editores, Outubro de 2000.

1.8.20

BALADA DAS MULHERES NO RIO

À memória de Jorge de Sena


As mulheres lavam no rio
o lixo quotidiano
e, às vezes, salta um peixe
da roupa ou um oceano

onde elas flutuam
como nenúfares cinzentos,
onde são só vegetal
vivência sem desespero,

onde são manhãs ou noites
ou nenhum tempo sequer,
onde são serenas coisas
ou nada se se quiser.

António Rebordão Navarro

[Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes, Ed. Asa] O POVO, MEU POEMA TE ATRAVESSA, Antologia poética de língua portuguesa nos cem anos da revolução de outubro, Selecção e prefácio, Francisco Duarte Mangas, Modo de Ler - Centro Literário Marinho, Lda., Porto